Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

sábado, 1 de janeiro de 2011

A maldição cigana

- Onde... está... o... Igor? - perguntou o moribundo, com o resto de voz que ainda conseguia emitir.

Os três ciganos olharam ao redor do quarto daquela tenda. Não encontraram Igor. E ficaram preocupados. A mãe de Igor se aproximou do velho, inclinou a cabeça e lhe fez um carinho.

- Em breve ele chegará, papai...

Com esforço sobre-humano, o cigano doente disse:

- Eu... estou... prestes... a... morrer. É... chegado... o momento de... Igor participar... do ritual de... minha... passagem. - Respirou fundo, com dificuldade. 

A tia e o tio de Igor também se aproximaram um pouco mais. Eles não souberam o que responder ao avô de Igor. Pensaram em procurar o adolescente. Porém, nenhum deles poderia sair do quarto naquele derradeiro momento com o ancião cigano. A qualquer instante, a morte se faria presente.

A preocupação foi maior quando ouviram a pergunta do cigano-chefe:

- Onde... está... o... punhal?

Três olhares se voltaram para a mesinha de cabeceira do velho. O punhal da respectiva linhagem cigana precisava manter-se ao lado do moribundo durante todo o tempo em que ele estivesse definhando. Por isso, sempre fora visto ali nos últimos dezesseis dias, desde quando o diagnóstico médico decretou o tempo de vida que ainda restava ao cigano. Porém, o instrumento não se encontrava no local costumeiro. Uma desesperada busca fora feita rapidamente pelos três ciganos. Vasculharam cada cantinho não somente do quarto, mas da tenda, sem conseguirem achá-lo.

Sob o causticante calor no centro da cidade, gotas de suor escorriam pela face angustiada de Igor. Seus olhos desesperados procuravam uma cigana naquele aglomerado de pessoas.

Encontrou várias ciganas, as quais formavam um grupo colorido na esquina à sua frente. Aquelas enormes saias de cores vivas chamavam a atenção de todos. Enquanto caminhavam pelo passeio com aquele ar soberano e sedutor em busca de clientes, elas deixavam a palma da mão direita para cima, à espera de uma outra para se encaixar e ser lida. Claro que muitos pedestres as evitavam. Na verdade, a maioria esmagadora. Muitos deles atravessavam a rua, colocavam as mãos no bolso, ou mesmo as escondiam atrás do corpo, recusando-se a oferecer qualquer uma às ciganas.

Igor resolveu se aproximar mais um pouco e verificar se achava a que lera a sua mão no dia anterior. Seu olhos percorreram o rosto de cada uma daquele grupo. Não encontrou Soraya ali. Cabisbaixo, Igor andou a esmo pelas ruas do centro da cidade. Precisava voltar para o acampamento; com seu avô doente, sua mãe, seu tio e sua tia precisavam dele. O tempo era curto. Mas o que adiantaria retornar sem o punhal?

Ao atravessar uma rua, teve uma grata surpresa. Viu o brilho do vermelho da roupa de Soraya reluzindo logo à sua frente sob o sol de meio dia. Mas... não, não, mil vezes não! Ela não podia fazer o que ela estava fazendo!!!!

E saiu correndo para impedir a conclusão da transação. Igor tentava driblar aquele amontoado de gente para chegar mais rápido até Soraya. Quanto mais acelerava seus passos, mais encontrões o bloqueavam, atrasando sua corrida. E ele insistia em encontrar passagem.

- Ei, olhe por onde anda, garoto!!! - reclamou um homem quando foi arremessado à porta de entrada de uma loja, em função do encontrão que Igor lhe deu.

Por ser véspera do Natal, o centro da cidade encontrava-se com um número triplicado de pessoas. O adolescente cigano buscava se desvencilhar delas, ao mesmo tempo em que estreitava seus olhos na direção de Soraya.

Viu que o casal estava saindo de perto da cigana. Havia um embrulho sob o braço do homem que começava a se distanciar de Soraya. O outro braço do marido estava sobre o ombro de sua mulher. Eles se entreolhavam. Igor conseguiu notar uma feição de alívio sendo compartilhada pelo casal.

O adolescente cigano tentou acelerar as suas passadas. Diminuiu a distância de Soraya. De repente, para driblar duas velhinhas que saíam de uma loja infantil com várias sacolas de brinquedos, perdeu momentaneamente a visão de Soraya. Quando conseguiu enxergar a cigana, ela contava o dinheiro de sua mais recente venda. Provavelmente, o punhal do ancião cigano estava sob aquele grande embrulho que o homem carregava.

- Onde está o punhal, Soraya? Não me diga que está dentro daquele pacote? - perguntou Igor, apontando para o casal, logo quando alcançou a cigana. Ofegante e curvado ao apoiar as suas mãos nos joelhos, ele ouviu a resposta.

- Acabo de vendê-lo. Sim, é o próprio - disse Soraya, friamente. Igor se ergueu, surpreso.

- Como você ousou fazer isso? Eu lhe avisei que arrumaria o dinheiro hoje! Eu o consegui pela manhã, mas não te achara... E tínhamos combinado que o punhal seria apenas uma garantia enquanto ainda não fizesse o efetivo pagamento... - desabafou Igor, desolado.

- Você continua renegando o seu destino, Igor... Não aceitou o que vi nas linhas de sua mão e te falei ontem? - A cigana fez uma pausa e quase sussurou ao ouvido do adolescente. - É melhor você ficar longe daquele punhal...

O garoto ficou pálido. Relembrou o que ouvira da boca da cigana no dia anterior. Seu estômago revirou. Balançou a cabeça e esbravejou:

- VOCÊ É UMA CHARLATÃ!!!

Sem se alterar, a cigana respondeu:

- Eu sei que é mais fácil me desprezar e considerar minhas previsões sobre sua sina inválidas, Igor. Eu realmente não queria estar na sua pele... - Deixou o garoto digerir aquelas palavras e prosseguiu:

- De todo modo, não podia perder essa venda, garoto. O casal estava obcecado por um punhal cigano. Sabe-se lá por qual motivo... - Soraya se aproximou um pouco mais de Igor e reclinou a cabeça na direção do adolescente. - E pensei que seria mais um truque seu. Você me enrolaria e daria um jeito de não me pagar, como costuma fazer. Todos aqui no centro da cidade conhecem a sua fama, garoto.

Quando Igor ia avançar sobre Soraya, ouviu um apito.

- É ele mesmo, seu guarda! Foi ele quem me roubou quando saía do banco 24 horas nesta manhã! - um executivo mauricinho apontava o dedo para Igor. O policial, que acompanhara a vítima na saga pelo descobrimento do ladrão que o roubara horas antes, apitou mais forte. - Parado aí, garoto cigano! Devolva o dinheiro do moço!

Num momento de paralisação caótica, Igor não sabia se arrebentava a cara da cigana, ia atrás do casal enquanto havia uma esperança de resgatar o punhal ou fazia um gesto obsceno para o policial. Resolveu fazer tudo isso e muito mais.

Ao tomar o impulso para correr, empurrou a cigana; já no embalo, chamou o guarda e o executivo de trouxas (junto com um palavrão) e tratou de ir atrás do casal que comprara o instrumento valioso de sua linhagem.

Deixou atrás de si o grito de dor de Soraya (que estatelou no chão), os palavrões de revolta do executivo mauricinho e o apito ensurdecedor do guarda, que foi ao seu encalço. Igor, conhecedor dos segredos das ruas e dos caminhos que poderia cortar, foi deixando o policial cada vez mais para trás, até que conseguiu ludibriá-lo.

O destino que lhe cabia realizar no momento era, isso sim, resgatar a todo custo o punhal de sua tradição cigana. Precisava dele o mais rápido possível, pois seu avô morreria a qualquer instante. Igor imaginou por onde o casal seguiu, a partir do último ponto em que vira o homem e a mulher. Olhava para o maior número possível de ângulos à procura dos novos possuidores do punhal. E tentava fazer isso sem parar sua apressada caminhada.

Igor teve a visão do casal (este se encontrava há cerca de cinco metros dele). Traçou uma estratégia para roubar o punhal enquanto o homem e a mulher caminhavam ainda pelo centro da cidade. Como uma sombra, o adolescente cigano fluia entre os pedestres, diminuindo a sua distância em relação aos dois.

Cerca de um metro era agora a distância entre Igor e o punhal sob o braço do homem. O marido e a esposa pararam. Estavam na beirada do meio-fio, aguardando o sinal de pedestres abrir. Agora a distância era de meio metro. Quando o sinal abrisse e o casal desse os primeiros passos, Igor daria o bote.

Abriu. Ao esticar a mão habilidosa que já furtara vários celulares e carteiras, o cigano adolescente só chegou a dois centímetros do punhal. Calculara errado a distância e o tempo do ataque. Igor esboçou uma careta de raiva. Esta se desfez rapidamente, pois ele precisou retomar a concentração para continuar ao encalço do casal.

Depois de três quarteirões sem uma real oportunidade de resgatar o punhal, Igor viu o homem dar o pacote para a mulher e pegar um chaveiro de seu próprio bolso. Eles pararam em frente a uma casa em ruínas. Havia a entrada principal e uma portinha do lado direito do casebre. O homem abriu a portinha, deixou sua mulher passar e fechou em seguida. Igor se aproximou, subiu rapidamente na base do portãozinho e, com cuidado, viu o casal caminhando por um estreito corredor. Ao final deste, havia um barracão. Eles pareciam morar ali.

Igor olhou para os dois lados da rua e para a casa em ruínas. Tudo liberado. Como um gato, escalou com perícia o portãozinho e já passou para o muro que limitava aquela casa e uma outra, também bem antiga. Foi caminhando sorrateiramente, atento a qualquer imprevisto.

Igor chegou a avistar o barraco que havia ali nos fundos. Enxergou o casal abrindo a porta e deixando-a aberta enquanto entravam. Pulou e caiu agachado no solo. Aproximou-se da porta. Antes de empurrá-la para ter acesso à sala, ele ouviu:

- Não quero esperar o Réveillon, Amor. Vamos fazer o ritual hoje mesmo, à meia-noite. Afinal, é Natal, uma data também apropriada para esse tipo de coisa. - Era o marido falando.

- De forma alguma! - respondeu a esposa. - A mãe-de-santo nos disse que devemos usar o punhal apenas no Réveillon. Vamos fazer tudo certinho, Caio.

- Mas, meu bem... - Igor continuava ouvindo - eu não suporto mais tanta coisa ruim. Eu quero colocar fim a essa fase. Nós não sabemos se teremos um local para morar até o Réveillon!?! E como faremos o ritual em céu aberto? Será muito perigoso...

- Dona Clementina não derrubará a casa e esse barracão até o final do ano. Ela fará isso no início do ano que vem, quando a construtora erguerá as bases do edifício que será construído aqui. Tenha mais um pouco de paciência, Caio...

- QUE DROGA!! - estourou Caio. - Minha paciência foi para o diabo há meses, desde quando fui demitido, você sofreu o aborto, perdemos o financiamento de nosso apartamento e continuamos sem conseguir um emprego!!

Claudia ficou sem palavras. O marido ainda não sabia por qual motivo toda aquela avalanche desabara sobre a vida deles. Ela se aproximou de Caio e mostrou-lhe o grande embrulho que embalava o punhal.

- Ele representa a nossa libertação, Caio. Com esse instrumento, colocaremos fim a essa maldição que se abateu sobre nós desde quando retomamos o nosso relacionamento. Valerá a pena esperar mais cinco dias para fazermos o ritual.

O homem passou a mão direita sobre os cabelos e depois coçou a testa.

- Eu sei que apenas um punhal cigano tem o poder de nos livrar dessa maldição que a mãe-de-santo disse estarmos possuídos. Porém, eu não sei se aguentarei esperar até o Réveillon. Mais alguma desgraça poderá acontecer em nossa vida e ferrar tudo de vez. - falou o marido.

Ele estava certo. Ao acabar de pronunciar essa frase, ele sentiu o impacto da cadeira da mesa da copa o atingir nas costas. Era Igor, que adentrou ferozmente pelo recinto, a fim de resgatar o punhal.

Claudia deu um berro ao ver seu marido cair desmaiado no chão. Ela ainda conseguiu segurar o embrulho com o punhal. Só que agora outras duas mãos também estavam presentes: as de Igor.

- Não! Saia daqui, seu pivete! - esbravejou Claudia, incidindo mais força sobre o pacote e agarrando-o com tudo. 

- Esse punhal é meu. Preciso dele de volta! - Igor tentou abraçar com mais ímpeto o punhal embalado, trazendo-o um pouco mais para si.

Eles disputavam num curto cabo-de-guerra a posse do punhal, até que Igor sentiu o hálito de Claudia, que vociferou:

- Você é cigano, garoto! Você sabe do poder de uma maldição... Só esse punhal poderá colocar fim ao trabalho de magia que fiz para reatar com Caio quando me descobri grávida após nosso rompimento e ele já iniciara uma nova relação. Você pode ter acesso a vários punhais. Por favor, suma e deixe ele comigo! Eu preciso deste para colocar fim a essa maldição!!

Sem demonstrar abalo pelo apelo que ouvira, Igor friamente respondeu:

- Esse punhal pertence à minha família. Eu o herdarei em breve. Não há outro punhal como este. - E deu uma cotovelada no queixo da mulher, derrubando-a também.

De posse do pacote, pulou sobre o corpo desmaiado de Claudio e saiu daquele barraco sinistro. Será que ainda chegaria a tempo para participar do ritual de passagem? Conseguiria estar com seu avô no momento derradeiro e herdar - por meio do punhal e através do contato com o sangue do ancião - o legado de sua linhagem?

Igor correu, acelerou seus passos e chegou ao acompamento quase exausto. Entrou na tenda e foi ao quarto de seu avô. Um suspiro de alívio simultâneo foi emitido por sua mãe, sua tia e seu tio. O velho ainda respirava. Seus olhos, quase completamente fechados, viram seu neto adentrar no recinto. Este trazia o punhal na mão.

- Aqui estou, vô. - Igor pegou o banquinho e sentou-se à cabeceira da cama do ancião cigano.

- Você... está... preparado... para... o... ritual? - Igor teve de se aproximar e colocar o ouvido próximo à boca do avô para ouvir.

Igor imediatamente se lembrou da leitura de mão feita pela Cigana. Engoliu em seco. A mão que segurava o punhal passou a tremer, sentindo o peso do que o instrumento representava. 

- "Vejo na linha da vida que existe o traço da maldição em seu destino, Igor. O que pode acontecer de pior na história de um cigano está indicado aqui. "

Igor deixou o punhal cair no chão da tenda. Seu avô franziu a testa. O adolescente percebeu a aproximação dos parentes. Então, abaixou-se e pegou novamente o instrumento.

- Sim, estou preparado, vô. - disse Igor, fazendo esforço para demonstrar convicção.

As forças que o moribundo fez para segurar seus últimos instantes até a volta de Igor puderam, enfim, ceder. O ancião estendeu-lhe a mão esquerda. Igor a segurou com sua mão esquerda, enquanto a direita carregava o punhal.

Assim ficaram, aguardando a última respiração do avô. Com muitas dificuldades, o ancião ainda respirava. Sentiu falta de ar e custou a fechar mais um ciclo respiratório. Com muito custo, conseguiu. Ainda não fora desta vez. Mas o fim estava próximo naquele leito de morte. E isso fez Igor segurar o punhal com mais força e redobrar sua atenção no ar que ainda insistia por entrar e sair do avô.

Então, o barulho que veio da entrada da tenda sendo aberta surpreendeu a todos. Um cigano de uns vinte anos entrou bruscamente no recinto. Trazia consigo sua esposa. Uma jovem e bela cigana era arrastada pelo punho pelo respectivo cigano.

- Não morra agora, velho. Não faça o ritual! Esse garoto não merece herdar o legado cigano. - - Igor, seus parentes e o avô se voltaram para o jovem cigano.

- O que aconteceu? - perguntou a mãe de Igor.

- Seu filho deve ser expulso, banido de nosso clã! - disse o cigano.

Igor olhou para o avô, depois para sua mãe e agora para o punhal. A cigana Soraya estava certa.

- Minha esposa está grávida de Igor. - O jovem cigano apertou ainda mais o punho da mulher, mostrando-a a todos. Ela abaixou a cabeça, sem conseguir encarar os ciganos daquela tenda.

O ancião, que estava com a cabeça inclinada para frente, ao ouvir a desgraça que se abatera sobre sua linhagem, jogou-a para trás, pousando-a no travesseiro com uma careta de dor e desgoto; e recolheu o pulso que oferecera a Igor. 

Igor se levantou num susto e ficou acuado no canto do quarto. Com o olhar arregalado, ele fitava cada um e o punhal, o punhal e cada cigano ali presente. Não suportaria ser banido do grupo, não pertencer ao seu clã.

E cravou o punhal em seu próprio peito!

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