Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Obediência

Há quinze dias, um pensamento tomou conta de minha mente. Qualquer atividade passou a ser acompanhda desse conteúdo mental. Quer quando urinava, ao preparar meu leite antes de dormir, no momento em que eu acordava, enfim, a cada instante, meu cérebro martelava um único pensamento.

Comprovei a força do pensar exaustivamente em algo. Percebi o quanto mexe com nossas emoções. Porque quando essa ideia se tornou poderosamente frequente, eu sentia também o ímpeto de realiza-la. Meu coração palpitava mais forte, minha boca secava e minhas mãos tremiam. Parecia possuído desse pensamento. Não conseguia mais ler Dostoiévski, meu ator predileto. Eu me tornara uma espécie de personagem, daqueles bem atormentados, de seus livros.

Cheguei ao cúmulo de queimar as obras literárias que mais amava. Os escritores russos já não faziam mais parte da decoração de minha sala. Havia, agora, um espaço vazio na estante. Gostaria que aquele vácuo se reproduzisse em minha mente. Afinal, considerava-me vítima da influência de Tolstói, Pushkin, Tchekhov. Tentei, insanamente, bater com a cabeça na pilha desses livros antes de queimá-los. Buscava extrair na marra esse pensamento nefasto de mim.

Não adiantou. Foi em vão. Continuava pensando obsessivamente na mesma ideia. E persistia os efeitos físicos, emocionais e psíquicos desses pensamentos. Coração disparado, secura na boca e tremedeira das mãos. Cheguei a pensar em síndrome do pânico. Será que era uma crise de ansiedade? Enfim, precisava tomar uma decisão mais drástica para interromper esse fluxo possessivo que alucinava minha mente.

Então, fui até o banheiro. Resolvi que aquele seria meu último banho. Deixei a roupa que só usara uma vez - no enterro de meus pais, recentemente - em cima da tampa do vaso sanitário. Vestiria o meu terno e acabaria, gloriosamente, com aquela ideia fixa que não me deixava mais em paz nos útlimos quinze dias.

Peguei a escova de cabo longo que usava para lavar meus pés. Segurei-a firme, com as duas mãos. E iniciei o movimento de vai e vem em meu coro cabeludo, esfregando alucinadamente, na esperança de desinfectar minha cabeça daquele pensamento. Queria chacoalhar o que poderia haver dentro de minha mente e escoar com a água gelada da ducha aquela ideia que me infernizava nas últimas duas semanas.

Creio que fiquei uns dez minutos nesse frenético movimento. Eu passei a ouvir aquele barulho de crash crash crash de uma forma tal que parecia vir de dentro de mim. Resolvi parar. Senti minha pele sensível, anestesiada. Desliguei o chuveiro. Fiquei alguns segundos em silêncio. Olhei pra cima, pra baixo... Nada! Será que consegui me libertar do pensamento?

Quando iniciei o esboço de um sorriso de vitória, aquela diabólica ideia surgiu mais intensa, mais poderosa, mais obsessiva. Junto com ela, reações fisiológicas mais violentas, viscerais. Meus dedos se contorceram em forma de garras, meus braços estavam tensos e firmes, como se a raiva regesse aquelas contrações e espasmos.

O que diabos acontecia comigo? O que eu precisava fazer para exorcizar aquele impulso que tomava conta não somente de minha mente, mas também de meu corpo?

Abri a cortina de plástico e saí molhado da banheira. Parei em frente ao pequeno espelho do banheiro. Olhei pra mim e me contemplei. Buscava uma resposta para extrair aquela ideia que me atormentava. Eu precisava de uma solução. Não conseguiria viver mais um dia sequer naquele estado de espírito deplorável. A angústia esmagava meu coração. Era urgente me libertar dela.

Abri a portinha desse espelho. Vi a máquina de cortar cabelo. Isso! Eu rasparia tudo; passaria máquina zero! Dessa forma, conseguiria ter uma maior leveza mental e encontrar a saída para extrair aquele pensamento de minha cabeça. Assim o fiz. Os tufos de cabelo foram adornando o chão ao meu redor.

Olhei novamente para o espelho. Algo diferente ocorrera. Meu olhar mudara. Não estava mais com aquele tom sofrido. Havia uma paz de espírito no meu reflexo. Porém, o pensamento continuava atuante. Só que desta vez não houve resistência de minha parte. Não reagi com revolta. Percebi-me, inclusive, submisso. Sim, eu o obedeceria. Eu o testaria. Veria até onde ele me levaria. Decidi, então, seguir aquela ideia. Vesti o meu terno e saí. Se era isso que ela queria, assim seria feito.

Caminhei como um soldado, obedecendo cegamente as ordens emanadas pelo general que ocupava a minha mente. A ordem era uma só: "vá ao cemitério!" Fui. Nem vi as pessoas ao meu redor. Parecia atravessar as ruas de uma forma mediúnica. Eu simplesmente sabia quando havia algum carro e quando não existia trânsito. Daqui a uns quinze minutos, o sol iria se pôr.

Cheguei ao cemitério com relativa rapidez, afinal, meus passos fluiam em harmonia com o tempo. Deparei-me com um enterro. Este deveria ser o último, pois havia a proibição de não ter velório após às dezoito horas. A voz me dava uma nova ordem: "siga a procissão." Assim o fiz.

Misturei-me ao pequeno grupo que acompanhava o caixão. Dois homens que velavam o morto a caminho de sua respectiva cova me olharam desconfiados. Evitei encará-los. Não queria me envolver em atritos. Não ali, não naquele momento. Só queria obedecer as ordens que a voz me ordenava seguir. E a última era para acompanhar o enterro. Não me pediu para dar meus pêsames a ninguém.

Os dois homens se aproximaram mais de mim ao reduzir o ritmo de seus passos. Um caminhava do meu lado esquerdo; outro do meu lado direito. Continuei olhando pra baixo. Creio que involuntariamente acelerei um pouco mais o meu ritmo. Mas não fez diferença. Os dois caras continuaram me cercando. Ou seja, eles devem ter caminhado mais rapidamente para conseguirem manter-se emparelhados comigo.

Tentei o contrário. Diminui meu ritmo; andei mais lentamente. Eles não reduziram. Continuaram seguindo a pequena procissão. Porém, algo me empurrou. Uma fincada na minha testa, acompanhada de uma ordem, me obrigou a não parar e continuar meu trajeto. "Siga o cortejo fúnebre." Durante o tempo que permaneci parado, essa ideia me martelou, exigindo minha obediência.

Então, voltei a caminhar, acompanhando o caixão. Este parara. O coveiro aguardava a chegada dele; já abrira o local onde se alojaria. Ali seria sepultado o corpo. Os dois homens se concentraram no momento derradeiro de despedida do defunto e não olharam mais pra mim. Junto com as outras pessoas, começaram uma cantoria. Ouvi.

Quando a cançao terminou e o processo de descer o caixão se iniciou, eu olhei para o lado. Vi uma lápide. Dois nomes esculpidos no mármore.

Carlos Fortinelli

Judith Ferreira Fortinelli

Uma súbita dor de cabeça surgiu; intensa, aguda, latejante. Pus uma das mãos na minha testa e com a outra mão me escorei na árvore que estava ao meu lado. Uma sensação muito estranha era sentida por mim. Minha garganta secou. Meus braços ficaram tensos e firmes. E meu coração acelerou suas batidas. Será a crise de pânico novamente? Justo aqui?

Procurei respirar fundo e recuperar minha sanidade. Esforcei-me por retomar o equilíbrio. Foi quando ouvi a voz: "aceite."

Aceitar? Aceitar o quê?

Quando consegui me refazer, percebi que o sepultamento havia terminado. O pequeno grupo já se deslocava para a saída do cemitério. Resolvi fazer o mesmo. A voz não me colocou nenhum empecilho a essa decisão. Assim, fui. A sensação de estranheza permanecia, me acompanhava. E a incógnita daquela última ordem também. "Aceite."

Ao sair de lá, decidi que retornaria para casa. Há alguns metros à frente, porém, eu senti que estava sendo seguido. Olhei para trás e avistei os dois homens do cemitério. Instintivamente, acelerei meus passos e entrei num beco.

Esperei a chegada dos dois estranhos e avancei sobre eles como um animal selvagem. Não lembro de ter agido tão furiosamente... Eu os destruí. Quando vi os dois corpos ensanguentados estirados no chão, eu percebi meus dedos arqueados em forma de garra, meus braços tremendo de tensão, minha boca seca e minha respiração ofegante.

Neste exato momento, uma lembrança explodiu em minha mente. Eu me vi num quarto escuro. Encontrava-me sobre uma cama; um casal dormia ali antes que eu chegasse. E permaneceu dormindo, só que agora um sono eterno, após a minha entrada no recinto. Golpes violentos e secos foram fatalmente bem empregados por mim sobre os dois idosos. Nunca me senti tão livre em toda a minha vida. Nessa recordação, me ouvi dizendo: "adeus pai; adeus mãe. Adeus, Sr. Carlos. Adeus, Sra. Judith."

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