Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

domingo, 28 de novembro de 2010

Herança Parental

Meus pais sofreram muito comigo. Eu não sei o que eles pensavam de mim naquela época. Gostaria de ter perguntado ao meu pai o que ele e minha mãe achavam quando eu fazia aquelas cenas aos domingos. Coitados... Todo dia de missa era aquela birra, aquele caos. Eu reagia tão agressivamente... Parecia um animal enjaulado, babando de ódio por me aprisionarem durante uma hora num local onde eu não queria estar.

Sempre detestei ir à missa. Aquele cheiro de incenso me sufocava. Aquela fala morosa do padre - na maioria das vezes, um estrangeiro com sotaque ridículo - ecoava de modo chiado pelas precárias caixas de som da igreja. Meus ouvidos zumbiam. E aquele papel tingido de amarelo? Era um fingimento, como se fosse um pergaminho antigo. Sem contar que grudava nos meus dedos, por estes estarem molhados de lágrimas... lágrimas de raiva... gotas de revolta que minha alma lançava para o exterior como reflexo de uma vontade reprimida.

Não sei se é lenda... Talvez seja. Alguns tios me contaram um mesmo segredo, em épocas e momentos distintos. Ora um, ora outro vinham até mim. Nunca na frente de meus pais. Quando um de meus tios chegava em uma festa da família, como o Natal, sussurrava para mim:

- "Você vomitou na pia batismal quando o padre derramou água benta em sua testa." - Confessavam esse meu comportamento por meio de um cochicho, ao agacharem próximo a mim. E sempre olhando para os lados, preocupados. Meu pai ou minha mãe poderiam estar à espreita.

Como não me lembro de nada no dia de meu batismo, creio que seja lenda criada por meus tios. Eles sempre tiveram inveja da fé e da devoção de meus pais. 

Porém, dos episódios de todo domingo eu lembro sim. Meus pais, desde cedo, notavam um comportamento estranho de seu filho. Eu, em meus seis anos de idade, queria tudo - menos ir à missa. Poderiam me deixar preso no banheiro do colégio com o filho-da-puta do Roney. Ou de castigo na aula da Tia Gladys, com a cara para o quadro negro, ouvindo os murmurinhos irônicos da turma do Roney. Eu sempre amei o negro mesmo. Mas ir à missa aos domingos, não. Mil vezes não.

Desde novinho eu tinha uma reação brusca frente à imposição autoritária. Uma fé imposta me agredia nas vísceras. Meu pai e minha mãe me obrigavam a ir de qualquer jeito à igreja nas tardes dominicais. Coitados... eles também eram obrigados a ir: o padre, a família e a sociedade cobravam essa presença deles todo santo domingo.

Mas na época eu não entendia assim. Só enxergava a imposição deles sobre mim. E reagia aos berros, com chiliques dignos de uma birra homérica. Não queria, claro que inconscientemente, ser mais um do rebanho. Só alguns anos compreendi o porquê daquelas cenas teatrais que representava dramaticamente aos domingos. Lutava como um pirralho metido à besta, que se considerava forte o suficiente para vencer a imposição da autoridade paterna.

Naqueles anos, eu não tinha força física. Era dotado apenas de um descomunal ímpeto agressivo contra a obrigação religiosa de frequentar a igreja aos domingos. Como odiava aqueles dias... Esse ódio cresceu e se inflamou por cada milímetro de pele, por cada órgão de meu corpo, por cada gota de sangue existente em mim.

À medida que crescia, as exigências religiosas só aumentavam. E meus protestos também. Lembro-me do dia da primeira comunhão. Meus coleguinhas enfileirados nos bancos da frente. Pareciam um bando de fantasminhas. Vestiam branco da cabeça aos pés. Até mesmo os sapatos eram brancos. Como não podia vestir negro - como eu sempre quis -, a cueca que eu usava era de um preto reluzente. Colocava três cuecas da mesma cor, uma sobra a outra, como forma de protesto.

E na crisma? Eu, claro, convidei meu pai para ser meu padrinho. Sorri, ou melhor, emiti sonoras gargalhadas secretas, em meu íntimo, quando o vi desesperado tentando apagar o fogo que iniciara na manga de sua camisa. Eu, sem querer, encostei a vela acesa na roupa de meu pai enquanto caminhávamos em direção ao altar. Olhei para o lado, onde minha mãe estava sentada. Fingi estar assustado com o que ocorrera com meu pai. Na verdade, queria só reparar na reação dela ao incidente. Que vexame eles passaram. Como amei aquele dia...

Até que minha rebeldia não tinha mais voz, tornou-se rouca perante os novos compromissos da fé imposta por meus pais. Meu pai morreu num Domingo. Coincidentemente, minha mãe também, cerca de dois anos depois.

- Com licença, irmão! - um fiel cutucou Fidélis, tirando-o do momento de lembranças em que se encontrava, ajoelhado ali no banco da igreja enquanto digeria a hóstia sagrada.

- Pois não - respondeu Fidélis, esticando o pescoço para cima.

E viu um fiel que acabara de chegar da fila da comunhão. Precisava voltar ao seu lugar, no mesmo banco de Fidélis, após ter comungado.

Fidélis se sentou, permitindo a passagem do homem. E olhou ao seu redor.

Naquela tarde de domingo, padre Agenor estava prestes a terminar a missa. Ao final, Fidélis daria um recado aos irmãos presentes. Na sexta-feira que vem, iniciaria a catequese para as crianças fazerem a primeira comunhão no fim do semestre. Ele era o responsável pelo curso há dez anos.

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