Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Maria Amélia: A frentista

Maria Amélia, hoje com a idade de quarenta anos, trabalhava há vinte no posto de gasolina da cidade de Matozinhos, interior de Minas Gerais. Aquele foi o seu segundo emprego.

Muitos ali tentaram descobrir onde a mulher trabalhara antes. Mas nem na entrevista para o cargo de frentista ela revelou. E não foi por falta de insistência de Farias, o dono do posto (um português típico, com um baita bigode se espalhando para os lados).

- Eu preciso de uma referência, Maria Amélia.

- Não. - Respondeu a candidata.

- Uma mulher aqui, num emprego como este e num posto de beira de estrada? Preciso da informação de onde trabalhou até mesmo para saber um pouco mais do seu passado. É importante na avaliação de seu curriculum.

- O passadu é passadu, meu senhor. As pessoas muda.

Farias ficou se perguntando se Maria Amélia trabalhara em algum prostíbulo para dizer aquilo. Será que ela era patrocinada por alguma cafetina numa das famosas zonas de Matozinhos? E por isso ela não queria ser julgada por ter trabalhado anteriormente com prostituição? Afinal, "o passado já passou" e "as pessoas mudam."

- Ora pois, sei que as pessoas mudam - insistiu Farias, dando ênfase à última palavra numa tentativa de corrigir sutilmente os erros da pronúncia de Maria Amélia. - Porém, como me sentirei seguro aqui sem saber onde trabalhou?


Maria Amélia diminuiu a distância entre eles, ocupando um espaço sobre a mesa que os separava, ao aproximar sua face da de Farias.

- Eu não consigu te transmiti segurança, meu senhor?

Um calafrio percorreu a espinha de Farias naquele momento. Ele recuou, deixando de ficar inclinado na cadeira. Baixou seu olhar para a ficha da mulher. E ficou pensativo por um breve tempo. Pegou o carimbo e socou-o no papel, fazendo barulho na mesa. APROVADO!

Maria Amélia começou a trabalhar naquele mesmo dia, há exatos vinte anos atrás. Disse para Farias que não precisava assinar a carteira dela. E que já queria ser útil ao posto o quanto antes.

Depois que ela se trocou no banheiro, saiu andando meio desengonçada com aquele macacão do posto. Gesuíno e Lenísio – os dois frentistas – olharam um para o outro e cochicharam sobre a mulher com macacão de homem que vinha na direção das bombas. Soltaram risinhos irônicos que as mãos em concha sobre a boca escondiam de Maria Amélia.

- Bão! - a mulher saudou os dois funcionários do posto. Eles se endireitaram e disseram simultaneamente:

- Bom.

Ela já foi logo tomando conta de uma bomba. O detalhe: O posto tinha apenas duas. Lenísio e Gesuíno não gostaram de ver a mulher se apossando de uma e os dois terem de dividir o manuseio da outra.

No outro dia, logo cedo, quando Maria Amélia chegou para trabalhar, ela teve uma surpresa. Ao se dirigir para sua bomba, percebeu que esta se encontrava emperrada. Isso ocorreu justo com o primeiro cliente. Ela apertava o gatilho quando introduzia o bico da mangueira na entrada de combustível do carro e não saía uma gota sequer.

Lenísio, o funcionário mais antigo do posto, havia feito uma gambiarra que bloqueava a saída de combustível da bomba de Maria Amélia. Esta notou que o problema tinha sido gerado por um dos dois ou pelos dois. Pois quando ela foi usar a bomba para o seu primeiro cliente, viu os lábios deles se esticarem num sorrisinho maligno quando o gatilho não funcionou.

Ela foi até a porta do motorista e lhe disse:

- Meu senhor, a minha bomba de gasulina tá com pobrema. Vc me dá uns quinzi minutim e volta aqui no posto? Vou resolver. E vou te dar de graça o combustível. Conta aí no seu relógiu a partir de já.

O motorista olhou para o seu pulso e marcou o horário.

- Daqui a quinze minutos eu volto. E vou encher o tanque - O homem falou ambiciosamente, arrancou o carro e saiu do posto.

Maria Amélia caminhou até a bomba ao lado. Gesuíno tinha acabado de abastecer uma caminhonete e ia afixar o bico da mangueira na bomba. E Lenísio escrevia algo numa planilha feita por Farias.

- Dia!... - Maria Amélia saudou os dois, indo de encontro a Gesuíno.

- Bom Dia! - os dois falaram em uníssono.

Maria Amélia pegou o bico da mangueira da mão de Gesuíno antes dele colocar na bomba. Já de posse dela, com a mão apertou sutilmente o gatilho. Foi o suficiente para cair uma gota de gasolina, a qual parou na palma da mão direita da mulher.

Ela guardou essa gota de gasolina como se carregasse uma hóstia sagrada enquanto encaixava o bico da mangueira na bomba dos rapazes. Depois pôde unir as duas mãos e esfregá-las, espalhando a gota de gasolina por elas. Se fosse uma hóstia, esta tinha se esfarelado. O cheirão se espalhou.

A palma da mão esquerda foi direcionada para o pescoço de Gesuíno. A da direita para o de Lenísio. Os dois estavam de frente para Maria Amélia, paralisados de perplexidade sem saber por que ela fazia isso.

Ao tocar o pescoço de cada um, ela disse:

- Perfume. - E deu uma ligeira espalhadinha pelo cangote de cada um.

Eles continuaram imóveis, espantados com aquele gesto, sem entender muito bem o que era aquilo.

Maria Amélia saiu andando serenamente. E ficou esperando o tempo passar, sentada num banquinho ao lado da borracharia do posto. Queria ficar praticamente invisível ali, sossegada no seu canto. E conseguiu.

Nenhum carro passou pelo posto para abastecer nesses quinze minutos. Até que o motorista disposto a encher o tanque de graça voltou. Como ele não viu Maria Amélia, foi até a bomba dos rapazes.

- Uma funcionária de vocês, não estou vendo ela agora – disse ele, girando a cabeça e olhando ao redor – me disse que.... Nossa! Que cheiro é este! Credo!

Fez uma careta de azedo e vomitou colocando a cabeça para fora da janela do carro. O vômito foi jorrado sobre a bota de Gesuíno, que se encontrava ao lado da janela do motorista para atendê-lo.

Maria Amélia observava toda a cena de seu cantinho na borracharia, fora do alcance do cliente.

Gesuíno deu um salto pra trás, com nojo do vômito. O motorista apertou o nariz.

- Que fedor é este? – falou com a voz anasalada em direção a Gesuíno. Este deu umas fungadas para o alto e não sentia nada. Na verdade, o fedor que sentia era do vômito sobre seus pés. Mas, mesmo assim, era suportável. Não precisava tampar o nariz.

Quando Lenísio se aproximou para saber o que estava acontecendo, o motorista fez uma cara ainda mais acentuada de nojo, de azedo.

- Credo! Eu vou dar o fora daqui!

Saiu cantando pneu e deixando os dois frentistas que nem dois de paus para trás.

Lenísio olhou para Gesuíno, coçando o alto da cabeça com a ponta dos dedos. Gesuíno olhou para Lenísio, com a testa enrugada de interrogação.

Lenísio saiu da letargia. Decidiu pegar o regador e jogar água sobre o vômito no chão e respingado na bota de Gesuíno.

Os dois, como cães farejadores, cheiravam o ar para identificar se havia algum fedor ali. Depois, cada um levantou ora um braço ora outro, aproximando o nariz de cada suvaco. Nada!

- Lenísio! Gesuíno! Venham aqui! – Farias, o português bigodudo, gritou para os dois frentistas.

O dono do posto parecia ter tomado um tapa do invisível. Pois fez uma cara estranha logo quando abriu a porta do escritório para chamar seus funcionários.

A cada passo que Lenísio e Gesuíno davam em direção ao chefe, a careta de nojo de Farias tomava uma proporção mais aguda. Ele pôs a mão tapando a boca ao dar uma ligeira agachada. Voltou à posição ereta ainda com a mão sobre os lábios. Olhou para os funcionários que se aproximavam mais. Não resistiu. Jorrou vômito no chão.

- Credo! Argh! – olhou de novo para os frentistas.

Percebeu que a cada metro percorrido pelos dois e que diminuía a distância entre eles, o fedor que sentia aumentava exponencialmente.

Não suportando mais essa onda invisível nojenta que invadia suas narinas, Farias decretou:

- Vocês dois! Fora do meu posto! Estão despedidos!

Eles pararam estupefatos. Um olhou para o outro e o outro olhou para o um sem entender o que estava acontecendo. Cheiraram o ar novamente e não sentiram absolutamente nada de anormal.

Neste instante, Maria Amélia saiu de seu cantinho invisível na borracharia. Foi soberanamente se apossar da bomba que funcionava. E nem deu bola para os dois, agora ex-colegas, parados ali no pátio do posto.

Deste dia em diante, até hoje, Maria Amélia trabalhava feliz. Quando Farias consertou a outra bomba, ela se dividia euforicamente pelo manuseio ora de uma, ora de outra.

A mulher tinha uma capacidade extraordinária de trabalhar. Não se cansava nunca. Jamais demonstrou fadiga nesses anos todos. Talvez por perceber nela esse dínamo de energia, Farias não contratou ninguém para o lugar de Lenísio e Gesuíno. Maria Amélia tomava conta de tudo. E, o melhor, deixava os clientes bem satisfeitos. Pois o movimento crescia. O faturamento, claro, acompanhava.

Mas algo em Maria Amélia parecia envolto em névoa para Farias. Ele – português teimoso que era – não desistira de saber em que a mulher trabalhara antes de assumir o cargo de frentista em seu posto. Mas não perguntava. Não queria correr o risco de ofender sua produtiva funcionária e perdê-la. Imagina se ela se ofendesse por esse questionamento, como ocorreu na entrevista de emprego? E, pior, pedisse demissão? Onde arrumaria uma frentista tão eficiente? E tão querida pelos clientes?

Porque ele percebia que Maria Amélia sempre falava algo para cada motorista no momento em que ela entregava a chave do carro e recebia o dinheiro. Às vezes Faria tinha a impressão de que os clientes vinham abastecer ali porque ganhavam uma palavra de força, um conselho, um elogio da mulher – e não para simplesmente colocar combustível em seu veículo.

Então, Farias esperava que o acaso um dia lhe apresentasse a resposta. E esse dia chegou. Foi num Domingo. O movimento estava reduzido pelo turno da manhã. À tarde, chegou uma caminhonete. Um negro a dirigia.

Maria Amélia devolvia a bomba para seu lugar de origem após o abastecimento de um carro. Viu a chegada de um outro e foi até a janela do motorista. Ao ver quem dirigia o veículo, tomou um susto!

- Olá, minha filha. Quanto tempo...

A frentista ficou sem voz. Não acreditava que tinha sido descoberta por ele. Imaginava que havia conseguido escapar da influência do negro. Foram vinte anos de ilusão. Agora se deparava com a dura realidade. Ele rompeu o silêncio.

- Nunca conheci alguém com o seu dom... Você faz muita falta em nossa casa, Amélia.

- Eu encontrei meu caminhu aqui, meu senhor.

- Mas o destino bate à sua porta novamente, Maria Amélia. Não adianta fugir dele. Vim para que você volte a trabalhar em nossa casa. Eu vim te pegar. - Ao dizer isso, o negro foi abrindo a porta da caminhonete.

Com passos rápidos, Maria Amélia foi até a bomba de gasolina e desatou o bico da mesma. O negro a acompanhou. Até que viu o que a frentista segurava em suas mãos. Um isqueiro. Os olhos negros do negro se tornaram ainda mais escuros.

- Não faça isso, Maria Amélia. Não coloque fim à sua vida desse jeito. Ainda mais que sabe o quanto o suicidio não resolverá seu problema.

- Eu tô cumprindu meu destino aqui, meu senhor. Exerço meu dom neste local há vinte anos. Eu ajudu cada viajante, cada motorista que passa aqui.

- Mas não é essa sua missão, Maria Amélia. Seu verdadeiro trabalho será melhor desempenhado na nossa casa, como você fez desde os seus dezesseis anos.

Maria Amélia apertou fortemente o isqueiro.

- Foram os quatru pioris anos da minha vida, meu senhor.

- Porque você ainda estava desenvolvendo os seus dons, Maria Amélia.

A frentista estava irredutível. E disposta a tudo, menos a voltar para a casa em que trabalhara após ser adotada pelo negro com quatorze anos de idade. Desde os dezesseis anos, ela desenvolvera sua mediunidade na casa do pai de santo que agora a encontrara. Porém, nunca se sentira à vontade ali. Queria ver o mundo, desempenhar seus dons em outro ambiente e de um jeito que ela se sentisse bem.

Foi isso que motivou Maria Amélia a pegar carona com um caminhoneiro para fugir da cidade de Montes Claros. Teve de superar a moeda de troca para viajar. O caminhoneiro queria sexo. Ela fez ele brochar quando, ao exigir o pagamento adiantado, ele foi pra cima dela na boléia. Maria Amélia passou a revelar segredos sobre o seu passado e fazer previsões do seu futuro. Isso fez com que ele a largasse. E, surpreendentemente, lhe pedisse conselhos para evitar a tragédia prevista por Maria Amélia. Ela assim o fez.

Por ter gostado tanto da experiência de usar sua mediunidade para aconselhar o motorista do caminhão que a levou para longe da cidade e do centro espírita do negro, quis exercer seus dons proféticos dessa forma. E assim o fez quando, passando pela estrada de Matozinhos, se deparou com o cartaz PRECISA-SE DE FRENTISTA afixado de forma bem evidente por Farias em seu posto de gasolina.

Ela não apenas abastecia o carro de cada cliente. Ela injetava palavras de ânimo na alma de cada um. Fazia previsões sobre o futuro. E os conquistava, os cativava dessa forma - e os viam voltar ao posto para novas profecias.

Era assim que Maria Amélia queria viver o resto da vida. Não suportaria ficar escravizada a um estilo de exercer mediunidade dentro de um terrero, de um ambiente fechado na casa do negro.

E se o combustível fora a fonte de seu prazer profissional, ele seria também a saída para não ser novamente enclausurada numa vida de sacrifícios sem sentido para ela.

Quando acendeu o isqueiro, Farias saiu do seu escritório e viu a cena fatídica:

Maria Amélia apertou o gatilho da bomba e despejou gasolina sobre si. O isqueiro fez com que as labaredas se espalhassem fortemente sobre ela. E, claro, a explosão que se seguiu levou junto o negro, a caminhonete, o escritório de Farias e o português. O fogo consumiu tudo, menos o sorriso vitorioso que Maria Amélia esboçou naquele dramático e suicida gesto de libertação. Sua vontade prevaleceu.

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