Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Na mente do psicopata

O psicopata encontrava-se sentado na sala de interrogatório. Aguardava a chegada do especialista em análise do comportamento. Mais uma vez o interrogariam. Estava ali há cerca de quatro horas. Vários policiais tentaram extrair as informações necessárias do criminoso. Não conseguiram obter uma sílaba sequer. E, o mais incômodo, saíram desconcertados. Foram incapazes de suportar o olhar frio e penetrante daquele enigmático homem.

Ele era observado por um grupo de homens e mulheres fardados que ocupava a sala ao lado. Todos o avaliavam através do falso espelho que os separavam. Parecia um artista, daqueles que hipnotizam a platéia com sua simples presença carismática. E arrastam a multidão através de seu brilho. Porém, o que destacava aquele homem era um brilho sinistro.

A atmosfera gélida do recinto em que o psicopata permanecia talvez representasse fielmente o seu habitat. Sua psique provavelmente sentia-se confortável naquele ambiente. E ele, impassível, desejava olhar nos olhos do próximo imbecil que chegaria. Internamente soltaria mais uma macabra gargalhada ao ver a reação de assombro do merdinha que viria.

Vários olhares – até então focados no psicopata – se dirigiram para a entrada da sala de interrogatório. Tal como a platéia de uma partida de tênis acompanha a bola de um lado para outro, os policiais – antes hipnotizados pela aura do assassino – agora observavam o especialista abrir a porta. A cada segundo, variavam seu olhar. Ora para o criminoso, ora para o psicólogo. Já os dois, silenciosos e imóveis, se encaravam. Enquanto isso, a platéia procurava vestígios na expressão facial de cada um. Ansiavam por identificar medo, seja de qualquer das partes. Mas se frustraram.

O especialista, ainda de pé, e o psicopata, permanecendo sentado, não esboçaram um milímetro de vacilação. Se piscaram, ninguém do camarote investigativo ao lado percebeu. Pareciam dois enxadristas. E o tabuleiro talvez existisse no invisível. Ou melhor, na mente de cada um. Quem receberia o fatal xeque-mate? O aglomerado policial da sala ao lado gostaria de apostar. Mas, quem sabe pela primeira vez, o espetáculo não seria mais prazeroso do que a aposta em si?

Se os protagonistas pudessem ouvir o som do recinto ao lado, teriam escutado o “ohhh”, tal qual a torcida faz quando um jogador executa um lance genial e surpreendente. Pois os policiais não acreditaram no que viram. O psicopata levantou-se e, gentilmente, com as mãos algemadas, apresentou a cadeira do outro lado da mesa para o especialista sentar-se. Só nesse instante o psicólogo fechou a porta. Deu três passos e sentou-se.

Abriu a pasta de arquivos que carregava debaixo do braço e a colocou sobre a mesa. Em cada movimento, o especialista fitava o criminoso. E era por este fitado. Nenhum som saíra da boca dos dois até o momento. Mas o diálogo se apresentava de modo eloquente por meio do intercâmbio silencioso. A platéia fardada permanecia alternando a atenção entre um e outro.

- Pode perguntar – disse, com naturalidade, o psicopata.

Mais alguns segundos de silêncio entre os dois. E o especialista respondeu:

- Não estou aqui para fazer-lhe pergunta alguma. Quero apenas externar a minha admiração.

Um ligeiro movimento na sobrancelha direita do psicopata parecia denotar desconfiança.

- O segredo para traçar o perfil psicológico é pensar de um modo semelhante ao de quem investigamos. Além disso, existe a demanda de uma certa identificação com o criminoso. – O especialista falava como um professor aos seus alunos. – O sucesso de um analista comportamental se deve ao fato de deixar passar por sua mente, através de uma similaridade, os tipos de sentimentos, pensamentos e motivações dos assassinos que ele estuda e caça.

O grupo de policiais saiu do transe. Olhavam uns para os outros, indignados com aquelas afirmações. Recusavam-se a admitir que se assemelhavam, mesmo em escala ínfima, com os detentores de uma mente criminosa. Não, mil vezes não.

O especialista parecia ser realmente um exímio professor. Mesmo não ouvindo o que se comentava na sala ao lado, ele fez a pausa precisa para retomar sua fala no exato instante em que o silêncio foi retomado pela platéia fardada.

- Só um igual reconhece outro. Não há como alcançar um perfil psicológico certeiro sem uma profunda compreensão da psique de quem é analisado. E esta só é alcançada por meio da similaridade mental.

Diante do impacto dessas palavras, o psicopata se acomodou na cadeira. Será que foi atingido pela sua própria vaidade? Afinal, o especialista não fez nenhuma pergunta infantil. Também não chegou se impondo tiranicamente como os outros policiais fizeram. Conquistou o seu respeito com o olhar e a postura. Se o assassino não tivesse convidado o psicólogo a sentar-se, será que este teria adentrado na sala de interrogatório? Estaria sustentando o seu silêncio eloquente até agora?

E o especialista continuou:

- Acabei de ler a sua ficha. – A pasta aberta foi virada para o psicopata. – Aqui estão descritos os depoimentos dos que cometeram os crimes em seu nome. Não há uma assinatura nas cenas onde cada assassinato ocorreu. Porque cada pessoa, segundo seu jeito próprio de ser, o cometera de forma singular. – O especialista denotava uma verdadeira admiração. – Por que você não deu também uma ordem para tais pessoas deixarem um sinal específico que o identificaria, que seria a sua assinatura?

O suposto mandante cruzou os dedos de suas mãos algemadas e, logo em seguida, coçou a ponta de seu nariz com os dois indicadores esticados. Remexeu mais uma vez na cadeira e olhou frontalmente para o especialista.

- Você havia me dito que não queria perguntar nada. Porém, acaba de me inquirir. – O especialista ficou desconcertado. Mas se recompôs rapidamente. – O verdadeiro artista não se repete. Por que eu me repetiria? – sofismou o psicopata.

- O artista se repete no estilo e usa uma mesma assinatura em cada obra que cria – respondeu o psicólogo, mantendo seu olhar.

- Não é realmente um artista aquele que repete algo, nem que seja a própria assinatura. Um artista, singular, revoluciona. É o que eu faço. Não me repito.

- É por isso que estou aqui. Para ouvi-lo. Gostaria de saber o que fez para gerar assassinatos em série de modo tão brutal em tais crianças sem se repetir.

- Quero ouvir sua teoria. – O psicopata se inclinou para a frente, apoiando seus braços na mesa.

- Ok. Você, de alguma forma, espalhou uma mensagem. Essa mensagem calou fundo em muitas pessoas. E elas cometeram os assassinatos. Por isso a impossibilidade de encontrarmos uma assinatura. Cada pessoa trucidou uma criança de forma individual, segundo seu próprio estilo e as condições que a cercavam no ato do crime.

- Que pena... você tinha ganhado meu respeito. Acaba de perdê-lo. Mostrou-se tão medíocre quanto os que o antecederam. Ateve-se ao óbvio. – O criminoso recostou-se novamente na cadeira.

O psicólogo o estudava. Percebia que o Psicopata se dispunha a dialogar apenas com alguém do mesmo nível dele.

- Eu o testei. Desculpe-me. O que gostaria de saber é como fez para que tantas pessoas seguissem, no mesmo dia e horário, sua ordem fatal?

- É justamente essa resposta que gostaria de ouvir você me dizer. Arrisque-se! Exponha sua teoria! – provocou o Psicopata, deliciando-se.

- Sei que elas, quando flagradas, o acusaram. Mas só o fizeram após o crime que cada qual cometeu. Nesse instante, parece que saíram de um transe. E nunca vi isto em minha vida: pessoas comuns cumprirem uma ordem desta magnitude... – O psicólogo tentava reforçar sua admiração pela estratégia do psicopata. Quem sabe assim conseguiria que o próprio confessasse?

- Que prazer eu teria ao confessar? – percebeu o psicopata. – Só o farei quando alguém descobrir como eu – será que fui eu mesmo? – influenciei esses cidadãos a matar as crianças. – Voltou a inclinar-se para frente. – Enquanto isso, vocês só me acusam porque um bando de pessoas disse que o culpado pelos crimes que elas cometeram fui eu. Como podem provar? Elas provaram? Disseram como foram induzidas a assassinar?

- Não, não disseram.

- Claro! E nem vão dizer. Não criei uma seita para liderá-las. Elas barbarizaram ao matar tantas criancinhas porque simplesmente quiseram. Tinham algum interesse.

- Que tipo de interesse? – apertou o especialista.

- Todo mundo tem um tipo de interesse, de intenção egoísta por trás de suas ações. Ou você crê na bondade humana? Resta descobrir qual foi a delas para assassinar as crianças... – disse o psicopata, esticando os lábios num sorriso superior. – Aplique o que professou agora há pouco! Tente pensar como elas. Identifique-se com esses cidadãos “normais” que chocaram a sociedade. O que os levaria a trucidar crianças? O que te levaria a assassinar esses seres inocentes que “herdarão o reino de Deus?”

O especialista não sabia como agir. Demorara mais que seus antecessores, mas chegara ao mesmo ponto: o fracasso ao interrogar aquele homem.

- Agora é o meu momento de sair desta sala. – O psicopata se levantou, surpreendendo. E quando o especialista também ficou de pé, preparando-se para impedi-lo, a porta se abriu.

Todos os policiais que estavam na sala ao lado entraram e foram insanamente para cima do psicólogo.

Enquanto a pequena multidão, cegamente furiosa, atacava o especialista, o psicopata saiu lenta e soberanamente pela porta da sala de interrogatório. Deixou atrás de si gritos, muitos gritos. O especialista urrava, inconformado, desamparado e tremendamente confuso com aquele súbito ataque dos policiais.

E, na face do psicopata, apenas um fino sorriso.

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