Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Devorador

São vinte e uma horas. Faltam dez minutos para eu agir.

Eu só não sei se conseguirei saciar meu desejo, minha fome. Afinal, a cada segundo, mais eu quero me alimentar. Minha ânsia por alimento ganha uma proporção mais dramática. 

A cada minuto chega um novo alguém, uma nova tentação. Este é um horário muito nobre, pois desperta em mim uma devoção e uma gratidão tremendas. São vários "pratos de comida." E isso me faz salivar ainda mais. Eu pareço o cão de Pavlov. A única diferença é que ele estava preso. Eu sou livre. Ou melhor, assim me tornarei quando me alimentar. Por enquanto, sou apenas um moribundo. Pareço um zumbi. Um morto-vivo. Sem meu alimento, sou um nada.

Todavia, pelo jeito meu banquete será daqueles. Porque o número de pessoas aumenta a cada volta do ponteiro menor do relógio. E tem tudo para satisfazer minha fome. Será? Será que conseguirei escolher a melhor fonte de alimentação e me saciar com uma de tantas opções ao meu dispor? É tudo que eu quero. Preciso desse alimento. Eles têm muito a me oferecer.

Agora só depende de mim escolher o melhor alvo. O que se adequar mais fielmente ao perfil alimentar tão desejado terá o privilégio de receber as minhas bênçãos. A minha abençoada investida. Quem será o eleito? Ou a eleita?

Andei investigando alguns candidatos. Confesso que, mesmo sendo muitas pessoas, a maioria esmagora tem o perfil desejado. No meu estômago, tem apenas uma vaga para uma quantidade imensa de gente apta a ocupá-lo.

Aquele ali, por exemplo, gosta de lutas de MMA. É um banana. Não demonstra um pingo de agressividade no dia-a-dia. Os outros chegam a humilhá-lo até. Os primos dizem coisas absurdas a seu respeito. Contam histórias da infância. E, coitado, em todas ele sempre saiu perdendo. Nunca era o primeiro escolhido no par ou ímpar quando se formava o time de cada lado da peladinha da família. Era o último. E ia para o gol. Sofria com os chutes potentes contra sua pessoa. Quanto mais ele tentava fugir aos bombardeios, mais os primos faziam questão de persegui-lo, embicando a bola na direção em que corria. Não estavam nem aí para fazer o gol. Queriam "batizá-lo."

Parece que ele aprendeu a engolir sapos. Pois, desde então, não reage. Pois ficava cada dia mais passivo, acomodado, inerte perante as provocações. Esses são um perigo... podem explodir de uma hora para outra e fazer um baita merda na vida. Muitos crimes são cometidos pelos engolidores de sapo. Porém, antes disso, eu posso salvá-lo.

O outro ali está se separando da esposa. Será que terá a coragem para tomar essa decisão? A mulher, leonina, tem o péssimo hábito de se sentir superior ao humilhar o marido. Na verdade, o escolheu justamente para ter um ser inferior, quase um escravo, ao seu lado. E, assim, mostrar a todos que brilha mais que seu parceiro. Nutre sua vaidade dessa forma. Ela não me dá fome. Está imune ao meu abraço faminto.

Então, minha voracidade vai para aquele que ela dominou: seu marido. Ele, desde que se casou com ela, não conseguiu mais ter uma ereção sequer. Na verdade, apenas meia. Mas foi o suficiente para penetrá-la, gozar depois de dez segundos e fecundá-la. Depois do nascimento do filho, aí que ele foi jogado para escanteio com força. Não se sentia seguro no papel de pai. Já era humilhado pela arrogância da esposa, passou a ser criticado por todos. Ele tinha medo que o filho herdasse a sina de humilhado dele próprio. Achou que se distanciando fisicamente do menino não transmitiria seu jeito de ser, seu gen, seu vírus de humilhado.

Ôpa! Será que o filho poderá me alimentar? Não, não. Ainda não. Está muito novinho. Prefiro ir na fonte. E me nutrir daquele que carrega uma carga maior do que tanto almejo para me saciar. Só não sei qual escolho: o banana que gosta de assistir UFC ou o marido humilhado?

E ainda há mais opções. Quanto mais observo as pessoas em seu cotidiano, mais identifico presas. E noto que tenho um banquete à minha disposição, cada vez com um número maior de opções alimentares. Fico feliz por essa abundância. Creio que nunca terei escassez de alimentos.

Na verdade, por mais que proporcionalmente minha fome aumente com a elevação das opções de comida que tenho, eu creio que nunca conseguirei ficar satisfeito. Sou uma criatura condenada à perpétua insatisfação. Justamente por ter este leque quase infinito de comidas. Qual escolher? Como é difícil tomar uma decisão diante de tantas tentações, cada uma mais apetitosa que a outra.

Aquela mulher ali, por exemplo. Ela entra vorazmente pelo estacionamento do Shopping. Acredita que, conseguindo uma vaga rapidamente, terá mais tempo para comprar. E mais itens comprados, claro. Ainda bem que a cada compra, mais insatisfeita fica. Ela se parece comigo. Há uma enormidade de produtos, bens, objetos para comprar. Esse número apenas aumenta, junto com sua fome consumista. Porque estes são apenas aperitivos. A vontade de mais e mais volta rapidinho.

Será que justamente por isso, por se parecer tanto comigo, ela será mais gostosa de ser devorada? Será?

Chega um determinado momento em que não se escolhe bem. Porque a fome já está grande demais. Aí eu só penso em comer. Não preciso optar. O que vem pela frente será devorado. Quem estiver na minha frente será abençoado pela minha voracidade.

São, enfim, vinte e uma horas e dez minutos. Acabou o Jornal Nacional. É chegado o momento. Porém, fico perdido. Tenho milhões de vítimas em potencial para serem devoradas por mim. Todas enfeitiçadas. Eis o instante do deleite delas. E, claro, meu também. Porque agora elas esquecem tudo o que viveram no dia-a-dia e no decorrer dos dias, meses, anos, décadas. Elas se entregam ao desfrute: de sorrir, de chorar, de roubar, de matar, de viajar, de trepar. Ao prazer de se emocionarem.

Agora... elas são um mar de sentimentos. E me permitem mergulhar em um deles e embocar no oceano da saciedade.

Eu sou o Devorador de Emoções.

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