Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

sábado, 30 de março de 2013

O cárcere

Você já foi enganado por alguém? Já se sentiu traído? Então, você provavelmente sabe um pouco do que eu tenho vivido... Porque esse nível de engano e de traição dói nas vísceras. Dilacera a alma, esfacela o coração...

Eu nunca imaginaria que poderia ser vítima de um golpe tão baixo. E vindo justo dele... Dele!?! Com quem vivi praticamente toda minha vida!!! Tínhamos um vínculo tão estreito, mas tão estreito... Éramos como unha e carne. Onde um ia, lá estava o outro, acompanhando.

Era um relacionamento tão intenso, tão profundo... Sabe quando você está ao lado de alguém que ama? E não precisa dizer nada? O silêncio entre vocês não incomoda, não angustia? Pois é... Tínhamos esse nível de relação. E, aqui entre nós, não é fácil construir um vínculo desses, não é mesmo? Você sabe disso.

Com quantas pessoas você pode ficar em silêncio sem se sentir oprimido pela necessidade de verbalizar algo, qualquer coisa, apenas para não sentir o desconforto da presença do outro? Pois é... Desde pequeno nós desfrutávamos cada momento.

Lembro, por exemplo, de quando passávamos as férias de janeiro na casa do tio dele. Um condomínio fechado lá em Angra dos Reis, onde os funcionários da usina moravam. Numa determinada tarde, estávamos na varanda da casa, a qual era de frente para o mar. Começou a cair aquele toró! Uma chuva magnífica de tão assombrosa! Tudo em exagero: raios, trovões e água, muita água. O cenário que se formou do encontro entre o oceano e a tempestade era magistral, de um cinza quase negro.


Então, eu olhei para ele e ele olhou para mim. Ele segurava a bola. Ambos direcionamos o olhar para ela. E sorrimos. Levantamos, atravessamos a rua correndo e, logo quando pisamos na areia, ele deu um bico na bola para o alto. A bola subiu tanto, que ao levantar a cabeça para vê-la, as gotas grossas de chuva me impediram de olhar a altura que ela alcançaria. Sabíamos que ela cairia mais à frente. E corríamos com um largo sorriso no rosto, esperando a chegada dela.

A areia amorteceu a queda da bola. Ele a pegou. Nós nos divertimos horrores correndo enlouquecidos pela praia. Até que chegamos ao fim dela. E voltamos, com a mesma empolgação, dando passes de curta e de longa distância. Estávamos molhados, tanto pelo suor quanto pela água da chuva. Até que paramos na parte da praia em frente à casa do tio dele. Vislumbramos o mar, deixamos a bola na areia e fomos mergulhar.

De repente, a poucos passos de sentir a temperatura da água, ele freou. Eu, instintivamente, também. Nos olhamos novamente. A agitação do oceano e o fato de ali ter várias valas geraram aquele friozinho na barriga. Ele demonstrava um certo temor. A praia estava deserta. E se um de nós se afogasse?

Não sabíamos qual medo era maior: o de morrer ou de viver sem o outro. Como sempre fui o mais rebelde, eu o estimulei a retomar a corrida em direção às turbulentas ondas. Lá fomos nós! O medo aumentando a cada passo dado. À medida que a distância entre nós e o mar se reduzia, o pânico aumentava. Até que nossos pés sentiram o impacto da sensação gelada. Mergulhamos e deixamos as águas dissolverem qualquer terror de afogamento.

Ficamos pouco tempo, o suficiente para nos sentir corajosos, desbravadores e aventureiros. Voltamos para a areia e nos sentamos ali, de frente para o mar. Contemplamos aquela vista maravilhosa com a alma lavada. Aquele foi um dos momentos mais mágicos que vivemos em companhia um do outro. E, desde então, parece que nosso vínculo se estreitou ainda mais.

Dali em diante, justamente na entrada de nossa adolescência, nos consideramos melhores amigos. Em vez de sangue, foi a água (do mar, do suor e da chuva) que batizou o nosso laço de irmandade.

Trepamos pela primeira vez na mesma noite. Ele, muito certinho, paquerava as mais bem comportadas. Eu tinha uma queda pelas garotas mais assanhadas. Na verdade, eu sempre o incentivava a chegar naquelas meninas bem provocantes. Ele relutava. Dizia-me que ficar com mulheres assim queimaria o filme dele. Mas nesta madrugada, eu venci. Consegui fazer a cabeça dele. E ele experimentou um sexo selvagem com uma mulher de verdade, daquelas nem um pouco inibidas e que enchem a boca pra falar que adoram dar.

Percebi uma mudança no comportamento dele em relação a mim. Ele passou a me ouvir mais. Chegava até a me pedir conselhos. Porém, continuava relutante em segui-los. E claro que me dava mais atenção de um jeito que os outros não viam, isto é, longe da vista das pessoas. Porque eu era um cara que muitos temiam. E que, quando eu e ele andávamos por aí, curtindo a vida, era considerado uma "persona non grata."

Em contrapartida, todos o amavam. Todos o idolatravam. Ele, sempre prestativo e com um sorriso no rosto, gostava de mostrar o quanto ajudava a todos. Era visto como o bonzinho. Porque tinha sempre uma palavra amável para apaziguar, um conselho a dar, um auxílio a oferecer.

Assim, ele era muito bem visto socialmente. Pessoas conhecidas, parentes, colegas e vizinhos. Gente que o via pela primeira vez ou apenas em eventos sociais. Todos constantemente encantados com sua bondade. Confesso que nunca ouvi ninguém falando mal dele. A maioria elogiava. O restante se calava. Porque muitas pessoas não conseguem elogiar ninguém. E como não viam defeitos nele, não emitiam opinião.

Consequentemente, aqueles que me notavam, consideravam-me um mal elemento. Eram poucos. Afinal, era difícil eu ser visto. Mas desde o início de nossa relação eu me acostumei a ser incompreendido. Por isso, quase todos estavam ofuscados pelo brilho caridoso que ele emanava. Eu, portanto, passava despercebido.

Claro que eu aproveitava esses momentos - que eu chamo de secretos - para incitar-lhe decisões ousadas, arriscadas, desafiantes. Numa noite, mais especificamente às duas da madrugada de sexta para sábado, eu o acordei. Ele custara a dormir. Porque conseguira ser aprovado no exame de motorista na sexta pela manhã. E ficou puto pelo fato de seu pai não ter-lhe emprestado o carro para ir à balada. Fritou durante muito tempo na cama. Depois de poucos minutos de sono, eu o despertei.

Com um ar de estranhamento, ainda grogue, ele me ouviu dizer:

- Véi, que tal a gente roubar o carro do seu pai? E ir lá na New Sagitarius? Poderemos pegar umas gatas pra trepar. Tem cada mulherão... Vamos??

Ele engoliu em seco.

- Meu pai vai me matar se eu fizer isso, véi.

- Vai nada! E se fizer, foda-se dele! Aquele coroa ditador! Como ousa não emprestar o carro para o filho no dia que tirou carteira?

Parece que toquei em um ponto chave para motiva-lo. Ele arremessou o edredón para o lado e saltou da cama. Fomos trocar de roupa.

O velho tradicionalista deixava a chave do carro bem em cima da mesa da sala de jantar. E o controle remoto da garagem ficava dentro do próprio veículo. Como a mansão dele tinha um amplo jardim, com a casa mais ao fundo, as chances eram grandes de ninguém ouvi-lo ligar o carro e sair.

Pisamos que nem ninjas ao sair do quarto e fomos até o cômodo onde os coroas dormiam. Nenhum sinal de insônia deles. Estava liberado!

Pegamos a chave do veículo e nos dirigimos até a garagem. Como os cães o adoravam, vieram abanando o rabinho e sem latir quando abrimos a porta da frente. Fomos até o carro. Ele ligou. Nada como um modelo silencioso para dirigir. Ele apertou o botão do controle remoto e saímos.

- Yeah!!!!!! - gritei forte!

Ele sorriu. Um sorriso que misturava apreensão e rebeldia. Sua imagem de filho correto, obediente, estava em jogo. Não quis dizer nada sobre essa preocupação que, com certeza, eu podia sentir, o corroía. Apenas gritei de novo:

- Mulherada!! Aí vamos nós!! Uhuuuuuuuuuuuuu!!!

Com um pouco de insegurança por estar dirigindo pela primeira vez justo nessas circunstâncias, roubando o carro do pai, ele quis se libertar de todas essas preocupações e temores. Fez uma manobra brusca e entrou no posto de gasolina. Na loja de conveniência, comprou latinhas de cerveja estupidamente geladas.

Não falou nada comigo. Apenas fez tudo isso em silêncio e com a cara fechada. Demonstrava uma concentração nunca vista em seu semblante. Aparentava determinação em fazer loucuras.

- Estou de saco cheio de cumprir as regras, de ser um cara legal, de sorrir quando não estou com vontade. De saco cheio!! Não suporto mais ter de ser educado. Vai tudo à merda!

Tomou outro longo gole de cerveja e acelerou o carro ainda mais. Essa foi a única coisa que ele se expressou no trajeto até a New Sagitarius.

Chegamos. E nos deslumbramos com a dança de uma das garotas da casa. Olhei para ele e o vi absolutamente fascinado com o corpo escultural da loira.

- É esta que irei passar a noite de hoje. Treparei com ela até o dia raiar. Esfolarei meu pau de tanto meter nela.

Tudo ocorreu como de costume. Até que ele retornou para sua casa, às sete da manhã. Seu pai, de pijamão, o esperava sentado na escada em frente à porta de entrada da mansão.

A partir deste dia, nossa relação minguou vertiginosamente. Ele colocou toda a culpa em mim: a decepção de seus pais e a consequente perda de confiança nele. Ainda mais quando o pai lhe disse que ele seria uma vergonha para a família se continuasse agindo como um revoltado, como um garoto que não tinha educação e um berço de ouro. Foi difícil para ele suportar essas reações.

E mais difícil ainda para mim vê-lo se virar contra mim, não dar mais bola para minhas palavras, ideias e conselhos. Posso parecer pretensioso ao dizer que quanto mais ele queria distância de mim, mais ele se robotizava. Virou um cara sem vida. Embora tenha conseguido manter sua imagem intacta aos olhos dos primos, colegas e amigos. E recuperou o apreço dos pais quando optou por fazer vestibular para medicina, a profissão que seu velho exercia e sempre desejara para ele.

Eu, infelizmente, já me sentia rouco de tanto falar com ele sem ser ouvido. Mesmo com a sensação de estar afônico, continuei procurando-o, insistindo pela sua atenção. Como um amigo fiel, estava ali ao lado dele, inclusive fazendo o mesmo curso que ele escolhera.

Passava ano, entrava ano e... nada! Ele realmente não dava bola para mim. Parecia me ignorar. Fazia questão de revelar impaciência em seu semblante quando eu puxava assunto e lhe propunha programas diferentes. Eu queria jorrar adrenalina na existência tão sem vida que ele seguia..

De raiva, eu lhe sugeria cada vez mais algo chocante, impactante, polêmico. Cheguei ao ponto de incentiva-lo a trepar com um dos cadáveres estudados na aula de anatomia. Ele poderia subornar o funcionário que guardava os corpos e, na calada da noite, deixá-lo experimentar a deliciosa sensação de choque térmico no pau ao jorrar seu sêmen no orifício gélido da mulher morta dissecada à tarde.

Ele ficou muito puto comigo ao ouvir essa maluquice. Não sei se tive influência ou não... mas o vi com muito mais raiva, quase babando de insanidade, quando ele me desafiou. Eu juro que não tinha dito para ele fazer o que fez. Porém, ele foi bem taxativo ao dizer:

- Ah, é!! Você quer ver do que eu sou capaz? Quer? Então, venha comigo!!

E me levou para a casa de sua noiva. Claro, ela era filha de um médico, sócio de seu pai. E o casamento ocorreria dali a quinze dias. Ele tinha a chave do apartamento dela. Sentou-se na poltrona ao lado da cama de casal. Ficou aguardando a chegada dela.

A noiva entrou, toda vestida de branco. Havia terminado mais um turno em seu plantão. Fazia residência em pediatria. Seu grande sonho era se tornar mãe. E ser uma segunda mãe para as crianças que cuidaria no exercício da medicina. Apenas estava esperando se formar e se casar para começar a gerar filhos, muitos filhos com ele.

Não sei se ele gostava de crianças. Aparentemente, sim. Pois sabia abaixar-se para falar no mesmo nível que os pequenos. E tinha uma linguagem toda especial de diálogo com eles. Mas podia ser mais uma encenação de sua atitude socialmente apreciada de bom rapaz. Quem não se derrete diante de um homem que demonstra carinho e atenção com as crianças? Ninguém questiona se é um comportamento falso ou forçado. Apenas se emociona.

Então, ele foi em direção a ela. Foi retirando as peças brancas das roupas que vestia. Ela falou para ele esperar. Estava cansada. Queria tomar um banho primeiro. Diante dessa resistência dela, ele ficou ainda mais furioso. Obviamente que ela nunca o tinha visto desse jeito. E se assustou terrivelmente. Fez força para se desvencilhar dos braços dele. Mas ele era mais forte e encontrava-se possesso. Simplesmente a arremessou na cama. E pulou logo atrás, virando-a de costas. Ele estava excitado.

- Como eu sei que se nos casássemos você nunca faria sexo anal comigo, nós faremos agora, sua vadia!!!

E começou a estuprá-la, a violentá-la de diversas formas. E não conseguiu parar. Passou a esmurrá-la. O lençol e os travesseiros receberam inicialmente alguns respingos vermelhos. O branco deles e o das roupas dela, enfim, ganharam o predomínio dessa outra cor.

A bagunça feroz desencadeada por ele, com os gritos de horror dela e os barulhos do corpo dela sendo espancado, não deu outra. A polícia chegou. Os vizinhos devem ter ligado. E eu acabei me fodendo junto. Agora estou aqui, nesta prisão. Estou atrás das grades. Por culpa dele... dele!!! Quem diria... Mas esta é a realidade. Estou aqui. Encarcerado. Duplamente aprisionado. E, o pior. Continuo sem ser notado.

Ele, neste exato momento, está se aproximando daqueles pequenos, esfarrapados e retangulares espelhos que costumamos ver em filmes que têm um presídio como cenário. Ficavam ali, encostados na pia. Ou escondidos embaixo do colchão de algum presidiário. Aqui também tem um. É do prisioneiro que divide a cela conosco.

Opa! Ele, durante muito tempo meu melhor amigo e recentemente meu grande inimigo, traidor filho da puta, está pegando-o agora. E olha para o objeto que reflete seu rosto. Puxa, eu preciso ser notado urgentemente!!! Tem de ser agora!!

- Ei!! Me escuta, por favor!! Me ouve, caralho!!! Eu sou VOCÊ!! O você que VOCÊ insiste em não querer ver.

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