Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Compromisso

- Ei, cuidado, pô! – vociferou o executivo de terno e gravata. Há poucos segundos atrás, quando movia a xícara de cappuccino até seus lábios após pedir a conta para Mastrangelo, este esbarrara na mesa em que se encontrava e provocara o acidente. O imenso e negro bigode em forma de V invertido do homem de terno e gravata tornara-se marrom por causa do café esparramado entre seus pêlos. Sua face ficou vermelha de raiva. Seus olhos faiscavam a ira em direção ao atendente. 

- Desculpe-me, senhor. - Mastrangelo abaixou a cabeça, submisso. Logo em seguida, em vez de olhar diretamente para o cliente e tratar de limpar o estrago provocado pelo café derramado que respingou na roupa do homem, Mastrangelo avistou o relógio acima do balcão. Faltavam cinco minutos para as vinte e duas horas. Mesmo estando numa cafeteria-livraria de uma cidade interiorana dos Estados Unidos, nem se fosse num carro de fórmula 1 chegaria a tempo para o compromisso com Matilda, sua namorada, na estação de trem. 

Mastrangelo fora encarregado de fechar a cafeteria-livraria naquela noite. Ele, portanto, trabalhava sozinho naquele horário. Quando o executivo, o qual era o último cliente, pagasse a conta e saísse, Mastrangelo ainda teria de colocar os livros espalhados pelas mesas em ordem nas prateleiras. O turno tinha sido bastante movimentado. Alguns estudantes juntaram várias mesas e fizeram uma pesquisa de horas no estabelecimento. E deixaram os exemplares para Mastrangelo organizá-los nas estantes.
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domingo, 5 de dezembro de 2010

O inquilino

O interfone tocou. Fui pego de surpresa. Estava tão concentrado em meus pensamentos... tão entretido na minuciosa tarefa a qual me dedicava...

- Quem é? - perguntei.

- Sedex.

Meu prédio não tem elevador. Então, desci as escadas. "Será que minha encomenda chegara?" Como moro no segundo andar, não demorei muito para alcançar a portaria.

Ao me ver, o carteiro começou a escrever. Quando cheguei perto, ali no portão do prédio, vi que ele preenchia um espaço com detalhes da entrega. Vários endereços se destacavam no local onde ele escrevia. Ali estava o nome da minha rua e os números do meu prédio e do meu apartamento.

Na verdade, não posso dizer que seja meu. É alugado. Há quase dois anos estou aqui. Em breve, o contrato de aluguel vencerá. Um dia terei o meu. Mas creio que não será este. Não... depois do que aconteceu, não será não...

- Identidade, por favor? - foi a pergunta que ouvi do moço todo uniformizado com aquela roupa de cor amarelo e azul. E lhe informei os dados de meu RG.
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domingo, 28 de novembro de 2010

Herança Parental

Meus pais sofreram muito comigo. Eu não sei o que eles pensavam de mim naquela época. Gostaria de ter perguntado ao meu pai o que ele e minha mãe achavam quando eu fazia aquelas cenas aos domingos. Coitados... Todo dia de missa era aquela birra, aquele caos. Eu reagia tão agressivamente... Parecia um animal enjaulado, babando de ódio por me aprisionarem durante uma hora num local onde eu não queria estar.

Sempre detestei ir à missa. Aquele cheiro de incenso me sufocava. Aquela fala morosa do padre - na maioria das vezes, um estrangeiro com sotaque ridículo - ecoava de modo chiado pelas precárias caixas de som da igreja. Meus ouvidos zumbiam. E aquele papel tingido de amarelo? Era um fingimento, como se fosse um pergaminho antigo. Sem contar que grudava nos meus dedos, por estes estarem molhados de lágrimas... lágrimas de raiva... gotas de revolta que minha alma lançava para o exterior como reflexo de uma vontade reprimida.

Não sei se é lenda... Talvez seja. Alguns tios me contaram um mesmo segredo, em épocas e momentos distintos. Ora um, ora outro vinham até mim. Nunca na frente de meus pais. Quando um de meus tios chegava em uma festa da família, como o Natal, sussurrava para mim:

- "Você vomitou na pia batismal quando o padre derramou água benta em sua testa." - Confessavam esse meu comportamento por meio de um cochicho, ao agacharem próximo a mim. E sempre olhando para os lados, preocupados. Meu pai ou minha mãe poderiam estar à espreita.
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segunda-feira, 21 de junho de 2010

RON

As pessoas têm medo de mim. Elas me evitam. Na verdade, sentem nojo da minha presença. Basta eu me aproximar para obter o afastamento imediato delas. E é aquele tipo de distanciamento mesquinho. Pois se preocupam em, indiretamente, caminhar no sentido contrário ao meu. Fingem sair de perto por outro motivo. Mas sei que é por minha causa.

Nem preciso chegar bem próximo para obter essa aversão. Basta uma certa distância, ou mesmo a visão da minha chegada. Isso é suficiente para cada um tomar um rumo contrário ao ponto onde estou e poderei estar. O corpo das pessoas parece movido por um motor, acionado quando seu radar de hipocrisia detecta a minha aproximação. Nem olham nos meus olhos. Simplesmente vão. Tratam de ir para bem longe de mim, tamanho o pânico de serem contaminadas. Pareço o agente causador de uma moléstia fatal. Uma espécie de câncer sob forma humana.

Você pode pensar que sou horroroso. Não, não sou. Também não sou belo, confesso. Mas tenho traços bem delineados e equilibrados. Tudo bem, um metro e sessenta de altura não se enquadram nos padrões sociais de virilidade. Porém, do jeito que as pessoas me evitam, minha aparência deveria ser assustadora. Meu rosto precisaria estar carcomido pela lepra. Minhas orelhas teriam de ser deformadas, tais como as dos lutadores de jiu-jitsu. Enfim, eu teria de ser um monstro. Contudo, não sou.
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Na mente do psicopata

O psicopata encontrava-se sentado na sala de interrogatório. Aguardava a chegada do especialista em análise do comportamento. Mais uma vez o interrogariam. Estava ali há cerca de quatro horas. Vários policiais tentaram extrair as informações necessárias do criminoso. Não conseguiram obter uma sílaba sequer. E, o mais incômodo, saíram desconcertados. Foram incapazes de suportar o olhar frio e penetrante daquele enigmático homem.

Ele era observado por um grupo de homens e mulheres fardados que ocupava a sala ao lado. Todos o avaliavam através do falso espelho que os separavam. Parecia um artista, daqueles que hipnotizam a platéia com sua simples presença carismática. E arrastam a multidão através de seu brilho. Porém, o que destacava aquele homem era um brilho sinistro.

A atmosfera gélida do recinto em que o psicopata permanecia talvez representasse fielmente o seu habitat. Sua psique provavelmente sentia-se confortável naquele ambiente. E ele, impassível, desejava olhar nos olhos do próximo imbecil que chegaria. Internamente soltaria mais uma macabra gargalhada ao ver a reação de assombro do merdinha que viria.

Vários olhares – até então focados no psicopata – se dirigiram para a entrada da sala de interrogatório. Tal como a platéia de uma partida de tênis acompanha a bola de um lado para outro, os policiais – antes hipnotizados pela aura do assassino – agora observavam o especialista abrir a porta. A cada segundo, variavam seu olhar. Ora para o criminoso, ora para o psicólogo. Já os dois, silenciosos e imóveis, se encaravam. Enquanto isso, a platéia procurava vestígios na expressão facial de cada um. Ansiavam por identificar medo, seja de qualquer das partes. Mas se frustraram.
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Realidade

Ele acabara de assistir o último episódio da quarta temporada de Criminal Minds. Gostou de ver o Hotch ser surpreendido pelo psicopata logo ao entrar no quarto do hotel. Preferiria que todos da equipe, não apenas o líder dela, fossem encurralados. Ah... como adoraria...

Ficou alguns minutos olhando a TV de LCD já desligada. Mentalmente ele traçava seu diabólico plano. Imaginou como sequestraria cada membro deste seleto grupo do FBI. Usaria as mesmas estratégias empregadas por Hotch, Morgan, Garcia, Reed, Rossi, JJ e Prentis para traçar o perfil psicológico de cada serial killer que caçam. Construiria meticulosamente o perfil de cada um. Descobriria claramente as vulnerabilidades de cada qual e as usaria como iscas para atraí-los. E essas sete armadilhas, todas elaboradas de forma peculiar e genial, seriam a fonte de seu sucesso.

Ele, então, seria reconhecido como aquele que liquidara com a nata da Unidade de Análise do Comportamento. Teria uma glória infinitamente maior do que qualquer serial killer. O sonho de deixar uma marca na vida seria, enfim, realizado.

O despertador de seu celular entrou em ação. A nona sinfonia de Beethoven, seletivamente programada, o trouxe de volta ao presente. A cada dia, uma música clássica diferente o lembrava de que era hora de trabalhar. Passou estoicamente por esse processo durante os últimos dez anos.
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