Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

domingo, 5 de dezembro de 2010

O inquilino

O interfone tocou. Fui pego de surpresa. Estava tão concentrado em meus pensamentos... tão entretido na minuciosa tarefa a qual me dedicava...

- Quem é? - perguntei.

- Sedex.

Meu prédio não tem elevador. Então, desci as escadas. "Será que minha encomenda chegara?" Como moro no segundo andar, não demorei muito para alcançar a portaria.

Ao me ver, o carteiro começou a escrever. Quando cheguei perto, ali no portão do prédio, vi que ele preenchia um espaço com detalhes da entrega. Vários endereços se destacavam no local onde ele escrevia. Ali estava o nome da minha rua e os números do meu prédio e do meu apartamento.

Na verdade, não posso dizer que seja meu. É alugado. Há quase dois anos estou aqui. Em breve, o contrato de aluguel vencerá. Um dia terei o meu. Mas creio que não será este. Não... depois do que aconteceu, não será não...

- Identidade, por favor? - foi a pergunta que ouvi do moço todo uniformizado com aquela roupa de cor amarelo e azul. E lhe informei os dados de meu RG.

Logo em seguida, ele me passou a caixa do Sedex. Pelo tamanho dela - o mesmo de sempre - poderia ser realmente a minha encomenda. E pelo peso, parece que era meu dia de sorte.

Balancei mais uma vez para sentir detalhes do conteúdo. Não deu certo. Não consegui saber se era minha encomenda. Uma pena que os funcionários dos Correios preenchem cada objeto com aqueles plásticos repletos de bolinhas. A gente não sabe o que elas cobrem. Mas... eu adoro estourar essas bolinhas!! O barulho que elas fazem ao serem dinamitadas pelos meus dedos me deixa feliz. É quase uma terapia pra mim estourá-las depois de abrir cada caixa.

Nem me despedi do Carteiro. Estava tão excitado em descobrir se realmente era o conteúdo que esperava... nem sei se ele comentou aquilo mesmo... Será que ouvi bem? Creio que ele disse:

- Graças a Deus, estou sendo transferido! Trabalharei em outra região e nunca mais terei de vir neste bairro, nesta rua e neste prédio, toda semana, para fazer essa entrega!

Cara estranho... nunca o vi e vem falar que não aguenta mais trazer encomenda aqui no prédio!?! Deve ter ficado bravo por eu não ter lhe agradecido e me despedido educadamente, como qualquer outra pessoa talvez faria. Ah! Tenho o mais o que pensar!

Corri de volta ao meu apê. Subi os degraus de três em três. Não queria me encontrar com nenhum vizinho. Não queria dar boa tarde a nenhum. Já estou cansado de ficar sorrindo para eles sem vontade de agir assim.

Mas o chato do síndico, que mora no primeiro andar, abriu a porta e apareceu no corredor justamente no momento em que eu chegara ali. Droga, eu iria bater o recorde nessa subida. Nunca, no período de um ano atrás, desde quando comecei a receber semanalmente minhas encomendas, fui tão rápido nesse trajeto. Também, hoje eu tinha de me apressar, pois é um dia especial. Posso finalizar minha obra!!! Claro, se a encomenda for a que eu estou esperando...

- Boa tarde, Cleiton! - ouvi aquela voz aguda do síndico ranzinza, um senhor de 77 anos. Meu nome ficava horrível quando pronunciado por aquela sonoridade emitida por ele. - Hoje terá reunião de condomínio, às 19 horas. Gostaria que você participasse, pelo menos para dar as boas-vindas ao novo morador do apartamento da Dona Clotilde.

Dona Clotilde era a proprietária do meu apar..., quer dizer, do apartamento onde eu morei nos últimos 24 meses e que estou prestes a sair.

- Boa tarde, seu Clóvis! - dei um sorriso amarelo pra ele e nem dei bola para sua pergunta. Embalei novamente e continuei subindo. Faltava apenas o próximo bloco de degraus até chegar ao segundo andar. Não encontrei outro vizinho. Ufa!

Ao entrar no meu, ou melhor, no apartamento que alugo, empurrei a porta apressadamente. Meu coração disparou. Não era efeito de minha corrida. Eu sei identificar quando os batimentos aceleram por excitação física e por excitação emocional. Desta vez, era ansiedade por concluir meu trabalho.

Essa empreitada teve início quando o reajuste anual de meu aluguel foi feito. Fiquei indignado... Eles aumentaram a uma taxa muito maior do que a estipulada no contrato. Porém, eu não pude fazer nada. Porque eu pagaria uma quantia mais alta se fosse rescindi-lo. E não teria dinheiro para pagar um advogado e ele defender meus direitos. Também não dava para arrumar um outro local em tão pouco tempo. Ainda mais que sonhava em ficar aqui até o fim do contrato de dois anos e comprar o apê.

Sei que fui obstinado nessa minha decisão. Minha esposa falou isso pra mim na época. Que eu estava fixado na ideia de morar para sempre neste local. Ela tinha razão. Porém, ela não sabia qual era a minha real intenção de permanecer por essas bandas. Esta tinha mudado depois dessa injustiça do reajuste do aluguel.

Por isso, ela me abandonou. Disse que eu só pensava na obra que estava criando no quarto que ela nunca podia entrar desde aquele fatídico dia do reajuste. Esse quarto seria da nossa futura filhinha.

Esse abandono dela me gerou ainda mais ódio por tamanho abuso financeiro. E tentei adiar a separação o quanto pude. Afinal, quando eu finalizasse minha obra, eu poderia reconquistar minha esposa e encontrar um novo ninho para o nosso amor.

Minha obra... a caixa estava ali, na minha frente, em meu colo. Eu, sentado no sofá da sala, só precisava abri-la e comprovar se realmente era a minha encomenda.

Respirei fundo e peguei a tesoura. Só consegui diminuir um pouco meus batimentos cardíacos. Sentia-me muito ansioso. A realização de um objetivo tão minuciosamente arquitetado e perseverantemente construído é um momento único. Queria desfrutá-lo ao máximo. Portanto, me permiti aquela excitação.

Sorri quando tirei a encomenda daquele mar de plástico com bolinhas. Eu as estouraria quando estivesse contemplando minha obra. Fui até o quarto. Coloquei a peça que faltava, a qual acabara de receber, no mecanismo caseiro que criara há cerca de um ano. Fechei a porta e a tranquei.

Se alguém estivesse do lado de fora, ouviria os estalos das bolinhas. Porém, em breve, provavelmente por volta das 19 horas e 15 minutos, não somente os vizinhos, mas toda a vizinhança das ruas ao redor ouviria um barulho estrondoso.

Foi o que aconteceu exatamente às 19:13h. Os moradores do prédio se encontravam no apartamento do síndico, inclusive aquele que seria o novo inquilino de Dona Clotilde. Na reunião de condomínio, a explosão foi ouvida. Olhos arregalados dos vizinhos em direção ao alto, ao segundo andar. O apartamento onde Cleiton morava foi destruído quando a bomba construída por ele detonou. Ele também havia feito um caixão, onde seu corpo fora encontrado quando os bombeiros tiveram acesso ao quarto em que se trancara.

Foi retirado um bilhete dentro de uma minúscula cápsula flexível de alumínio na arcada dentária de Cleiton quando a perícia analisou o corpo dentro do caixão chamuscado. Nele estava escrito:

"Encontrei o meu novo lar. Eu o construí. Meu amor, te aguardo para morar aqui comigo, neste nosso novo ninho. Não demore muito. Aqui jaz o novo inquilino desta morada."

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