Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Compromisso

- Ei, cuidado, pô! – vociferou o executivo de terno e gravata. Há poucos segundos atrás, quando movia a xícara de cappuccino até seus lábios após pedir a conta para Mastrangelo, este esbarrara na mesa em que se encontrava e provocara o acidente. O imenso e negro bigode em forma de V invertido do homem de terno e gravata tornara-se marrom por causa do café esparramado entre seus pêlos. Sua face ficou vermelha de raiva. Seus olhos faiscavam a ira em direção ao atendente. 

- Desculpe-me, senhor. - Mastrangelo abaixou a cabeça, submisso. Logo em seguida, em vez de olhar diretamente para o cliente e tratar de limpar o estrago provocado pelo café derramado que respingou na roupa do homem, Mastrangelo avistou o relógio acima do balcão. Faltavam cinco minutos para as vinte e duas horas. Mesmo estando numa cafeteria-livraria de uma cidade interiorana dos Estados Unidos, nem se fosse num carro de fórmula 1 chegaria a tempo para o compromisso com Matilda, sua namorada, na estação de trem. 

Mastrangelo fora encarregado de fechar a cafeteria-livraria naquela noite. Ele, portanto, trabalhava sozinho naquele horário. Quando o executivo, o qual era o último cliente, pagasse a conta e saísse, Mastrangelo ainda teria de colocar os livros espalhados pelas mesas em ordem nas prateleiras. O turno tinha sido bastante movimentado. Alguns estudantes juntaram várias mesas e fizeram uma pesquisa de horas no estabelecimento. E deixaram os exemplares para Mastrangelo organizá-los nas estantes.

- Aqui está, senhor. – O executivo pegou a conta que Mastrangelo lhe entregara, afrouxou com o indicador os óculos que se assentavam na base do nariz e observou de perto o valor. Deu um olhar de desdém para o atendente, tirou uma nota da carteira e deixou sobre a mesa junto com o papel. Levantou-se lentamente e tomou rumo da porta da cafeteria-livraria.

- Ufa! – foi o comentário que apenas os livros ouviram de Mastrangelo. Não queria que nenhum novo cliente surgisse das ruas quase desertas daquela região naquele horário. E correu até a porta para trancá-la.

Quando fez o movimento para fechar a porta, apenas viu seu reflexo no vidro da mesma. Ela já estava fechada! Mastrangelo achou aquilo estranho. Nunca um cliente fazia isso. Era costume naquele vilarejo deixar que os donos ou funcionários de cada estabelecimento se encarregassem dessa tarefa. Se alguém diferente, principalmente um cliente, fechava a porta de qualquer recinto comercial, isso era lido como um mau agouro. Era sinal de azar, o prenúncio da falência. Ou de uma fase de dívidas para o proprietário.

O reflexo de sua imagem no vidro da porta de repente tornou-se branco. Mastrangelo ficara pálido. Porque a porta não estava apenas fechada. Ela encontrava-se trancada!

- Maldito bigodudo filho-da-puta!!! – bradou Mastrangelo. Desta vez, não apenas os livros o ouviram. As xícaras de café, as taças de vinho, enfim, todos os objetos do local e até mesmo as traças dos dois livros mais antigos da livraria, os quais não eram consultados há anos, escutaram.

O relógio tocou. 22 horas. Matilda...

No outro canto da cidade, os passageiros do trem das 10 horas da noite abandonavam seus assentos e tomavam rumo pela estação. Depois de um turno de trabalho na cidade grande mais próxima ao vilarejo, eles apenas queriam chegar logo em casa.

Quando o trem que os deixara ali, partiu, ouvia-se um pequenino, mas frenético, barulho de TEC TEC TEC TEC. Era o som que a ponta do sapato de salto alto de Matilda fazia na estação à medida que seu pé direito, nervosamente, tocava o solo em batidas alternadas. A mulher encontrava-se escorada na plataforma de desembarque, apoiada mais pelo seu pé esquerdo, aparentemente parado. Quem visse seus dedinhos não diria isso. Eles mexiam, se friccionavam e se espremiam afoitamente naquele pouco espaço do sapato de salto alto. A morena de olhos azuis olhava o relógio, ansiosa. E ouviu o CABRUM de um trovão anunciando que uma tempestade estava prestes a desabar por ali.

Depois de ter esbravejado contra o vingativo executivo e olhado angustiado para o relógio acima do balcão, Mastrangelo se desesperou. Balançou a porta diversas vezes e... nada! Até que teve uma ideia: o celular!!

Foi até o balcão e apalpou o escaninho onde guardava suas chaves, sua carteira e seu celular. Era o único aparelho que poderia salvá-lo. Porque ali não havia um telefone fixo e não era uma zona wi-fi. Então, pegou o celular e murchou. A bateria estava quase acabando. Será que seria o suficiente para, pelo menos, enviar um SMS para Matilda? Mastrangelo tentou. Precisava avisá-la que se atrasaria. Na terceira palavra teclada, o visor se apagou. Por que estava dando tudo errado? Justo naquele dia? Depois de esperar tanto tempo para juntar dinheiro trabalhando numa pequena cidade americana e de ter a coragem de fazer o pedido de casamento!?! Por quê? Ele coçou a tatuagem de seu braço esquerdo (nela estava escrito: Maltida, amor eterno)

Resolveu andar pela cafeteria-livraria em busca de uma solução. Parecia uma fera perambulando pra lá e pra cá dentro de uma jaula. A diferença é que ele, nesse caótico movimento entre as mesas, tinha as duas mãos atrás da cabeça, como se um policial o tivesse abordado. Parecia espremer o crânio e retirar dali uma saída para se libertar da prisão em que o executivo bigodudo criara para ele.

Como não vinha nenhuma outra ideia, Mastrangelo, em seu habitual movimento de fim de expediente, começou a pegar os livros espalhados e a guardá-los em seus respectivos lugares nas estantes. Nas mesas unidas pelos estudantes, ele, com muita pressa, reuniu afoitamente uma pilha de livros e tentou carregar todos de uma vez. Claro que não deu conta. Vários caíram. E o estrondo dessa queda foi maior por conta da chuva que resolvera cair forte naquele instante. O eco de um trovão também ressoou na solitária e silenciosa livraria.

Apenas um livro sobrou no colo de Mastrangelo. Um livro surrado, bastante pesado. Era um dos dois mais antigos, onde as traças residiam. Ele olhou para o livro e sentiu o cheiro de mofo. Suas narinas começaram involuntariamente a se mexer. Até que Mastrangelo soltou um espirro escandaloso. Foi o suficiente para o mofado livro cair como um pedaço do teto que se despenca de uma estrutura já desgastada.

Enquanto Mastrangelo coçava o nariz, tentando reprimir outro espirro que vinha, uma fumaça, sinistra, começou a se espalhar à sua frente. O espirro fora evitado não pelos dedos repressores de Mastrangelo, mas sim pelo susto que o atendente tomou ao se deparar com um princípio de incêndio que se iniciava nas estantes repletas de livros. 

Mastrangelo instintivamente recuou. E ouviu uma sonora gargalhada. Esta conseguiu ser mais alta que o barulho da chuva.

Atrás da porta de entrada do estabelecimento, o executivo bigodudo abria um sorriso satânico. E mostrou para Mastrangelo o que trazia em sua mão direita: a chave do local, a qual usou para trancá-lo ali. E depois, levantando a mão esquerda para o atendente, o homem de terno e gravata mostrou um isqueiro. Foi o que usara para provocar o incêndio nos livros mais próximos da saída.

Mastrangelo correu de encontro à porta, tentando encontrar ar pelas frestas que havia ali. Ficou a menos de um palmo do executivo. Eles ficaram se olhando durante um breve tempo. Até que Mastrangelo começou a tossir continuamente. E foi se esparramando pelo chão, deslizando as palmas das mãos pelo vidro da porta. O fogo se espalhara rapidamente, alastrando-se por aquelas fontes de conhecimento que adornavam a cafeteria-livraria.

Os últimos instantes de consciência do sufocado Mastrangelo lhe mostraram a pior imagem. O executivo segurava, agora com as duas mãos, como se lhe apresentasse um cálice sagrado, uma caixinha com duas alianças. Não eram as que Mastrangelo mantinha no bolso de sua calça. E quando viu o olhar sinistro do incendiário, balançou a cabeça, humilhado, entendendo que o incidente do café apenas colocara mais lenha no plano homicida do executivo.

Quando a explosão do estabelecimento comercial no qual Mastrangelo trabalhava ocorreu, o executivo já estava bem distante do foco do incêndio que provocara. A chuva, tão impactante quanto começou, terminou.

Dentro de mais alguns instantes, chegou à estação de trem. O barulhinho de TEC TEC TEC TEC do salto alto de Matilda parou quando ela viu a chegada de John. Ela abriu um sorriso de felicidade, porque percebeu dois pequeninos brilhos vindos de uma caixinha aberta que o executivo segurava enquanto vinha em sua direção. Era sinal de que o plano deles foi bem executado. E de que o dela estava bem encaminhado. Em breve ela conseguiria seu green card.

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