Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Crise da meia idade: a libertação do mal

Era noite. Eu estava reunido com meus familiares. Minha mãe comemorava o seu aniversário. Todos se encontravam no terraço da casa de meus pais. Minha esposa brincava com nossos dois filhos, os quais formavam uma rodinha com meus sete sobrinhos; todos homens. Parece que os nossos genes - meus e de meus três irmãos - não abriam espaço para o lado yin da vida. Só yang. E ali, diante daquela prole, observava minha mulher com as crianças. Ela era o elemento yin no círculo yang daquele meninada.

Quando percebi, eu me vi isolado num canto do terraço. Porque observei outra rodinha. Esta tinha meus irmãos e suas respectivas esposas. Meus pais se juntaram a eles, trazendo garrafas de espumante. Encheram o copo de cada um para brindarem a venda de mais um imóvel de luxo. Sim, herdamos a imobiliária de meu pai. Nós quatro éramos os únicos corretores. Uma empresa realmente familiar.

Foi então que me dei conta do retorno de uma sufocante angústia, a qual vinha me rondando nos útlimos tempos. Um de seus reflexos girava em torno do fato de não conseguir me sensibilizar mais por aquele clima de festividade e união familiar. Na verdade, tinha asco por aquela reuniãozinha idiota. Sorrisinhos falsos e felicitações hipócritas. Por trás dessa fachada de glamourosa felicidade, havia uma competição voraz para o prêmio de melhor corretor do ano. Naturalmente, eu - o caçula - não participava dessa guerra velada entre meus irmãos. Eu era peça excluída desse tabuleiro imobiliário. Porque todos notaram minha vertiginosa queda na venda dos imóveis nos últimos cinco anos. Portanto, eles consideravam que continuaria não havendo ameaça competitiva de minha parte.  

Durante este tempo que minhas vendagens caíram em progressão geométrica, fui me tornando ainda mais excluído da família. Recebia, claro, nojentos incentivos fraternos de que "este ano você voltará à velha forma." Era uma maneira deles esfregarem na minha cara a decadência profissional que venho sofrendo. E se vingarem do fato de que fui o garoto prodígio no mercado imobiliário.

Tempos bons... Logo após o curso de corretor, na minha primeira transação comercial, eu vendi uma casa de luxo no bairro Mangabeiras, região nobre de Belo Horizonte. Meus irmãos não acreditaram. O caçula magricela da família desbancou o recorde do nosso irmão mais velho. "Sorte de principiante", eles pensaram.

Na época, eu, inocente que era, não notara o olhar invejoso dos meus três irmãos. Porém, essa percepção foi se desenvolvendo à medida que eu continuava batendo redordes. Desbanquei as conquistas iniciais de todos eles. Conseguia vender um imóvel luxuoso em dois dias. Muitas vezes, logo com o primeiro cliente que levava para ver um apartamento de cobertura triplex, já fechava o negócio após a inicial visita.

Isso tudo ocorreu quando fiz dezoito anos. Foi um sucesso marcante. Em consequência, casei com a mulher dos sonhos. Meus pais que nos apresentaram. Ela era filha de um amigo de meus progenitores. Em seguida, vieram os filhos. Até que aos 29 anos, comecei a sentir uma sensação estranha. Não sabia explicar o que acontecia comigo. Eu apenas detectava os efeitos desse vazio existencial. Era sufocante a angústia que sentia. Fazia de tudo para escapar desse perseguidor implacável. Como ele vivia dentro de mim, não conseguia me desvencilhar desse nó na garganta, dessa tristeza abissal.

Tentei, nesse processo de fuga, me afundar ainda mais no trabalho. Passei a ampliar o leque de imóveis. Até então, nossa imobiliária trabalhava exclusivamente com imóveis de luxo e na região metropolitana de Belo Horizonte. Mudei esse perfil da empresa. Fui atrás de imóveis - também de luxo - em cidades do interior. Viajava bastante. Para realizar eses negócios, eu precisava conhecer cada uma, me inteirar de seus bairros e cidadãos. Passei a ser um perito na arte de construir o perfil social, cultural e financeiro de cada cidade.

Naturalmente, essa aptidão me possibilitou fazer negócios ainda mais lucrativos. Em contrapartida, o tempo que passava junto à minha esposa e nossos dois filhos era cada vez mais curto. Minha esposa, submissa, não reinvidicava minha presença mais frequente em casa. E ralhava com nossos filhos quando estes choravam e cobravam. Ela deixava-os de castigo. Com o tempo, esse comportamento aversivo da parte dela os deixou emocionalmente sufocados, pois eram proibidos a reclamar quando eu não podia ir na reunião de pais, nem levá-los ao jogo do Cruzeiro ou mesmo assisti-los disputar uma final de futebol nas olimpíados do colégio.

E nada do vazio existencial diminuir. Tentei, então, buscar o prazer das mais inimagináveis maneiras. Quanto mais difícil e excêntrico fosse o desafio que me levaria ao êxtase, melhor. Porque não tinha mais graça ter amantes, sustentar outras famílias nas cidades do interior em que eu atuava. Garotas de programa, então, não me davam mais um mínimo de desfrute. Já tinha enjoado dessas formas efêmeras, comuns e nem um pouco criativas de me extasiar. Eu queria algo original, arriscado, inusitado.

Nessa época, descobri uma forma de testar a natureza humana. Certa vez, quis ver até que ponto um casal de recém casados de uma cidade interiorana de Minas, tradicionalíssima, estaria disposto a ter um imóvel de luxo que lhes renderia visibilidade e reconhecimento familiar e social. Eu cheguei a propor para o casal o seguinte: eu faria sexo, inclusive anal, com a esposa do recente marido na frente dele. Ele teria de se masturbar ao nos ver trepando. Em troca, eu lhes daria o imóvel. Sim, eles não teriam de pagar um centavo sequer.

Quando fiz essa proposta, os dois se entreolharam. Um tentava ver nas feições do outro a recusa a um convite tão sem cabimento. Mas se surpreenderam quando se depararam com um esperançoso olhar arregalado, daqueles que temos quando nos deparamos com uma oportunidade de sucesso que dificilmente teremos outra vez na vida... Claro que toparam! Não vou dizer que gostaram, porque eles não emitiram uma sílaba sequer após o chocante escambo. Mas pelo que percebi, e posso estar enganado nessa minha observação do que a aparência tenta esconder e acaba revelando, eles gostaram... E muito.

Esse foi apenas um exemplo do tipo de experiência que buscava para suprir meu vazio existencial. E não custa dizer que me movia cada vez mais intensamente no rumo de situações cada vez mais desafiantes, a fim de ter os mais extasiantes prazeres. E nem isso me nutria. Minha alma continuava órfã neste mundo desprovido de fontes de satisfação profunda.

Até que, ao acaso, descobri o tesouro do verdadeiro alimento espiritual. Era o que minha alma mais ansiava e pelo qual peregrinou estrabicamente ao seu encalço nos últimos anos. Esse encontro, essa descoberta, ocorreu quando voltava para Belo Horizonte.

Eu passava por uma longa estrada de terra num povoado a 300 quilomêtros da capital mineira. Nunca havia passado por um local com tamanha extensão rural. De um sítio para outro, ou de um casebre para outro, quilômetros os separavam.

Esse distanciamento foi crucial. Pois o efeito do que fiz não pôde ser descoberto. Afinal, quando vi o senhor de idade à minha frente levando suas quatro cabras, só pensei em uma coisa: pisar ainda mais fundo no acelerador. Sempre quis experimentar a sensação que a bola de boliche tem em seu percurso pela pista enquanto vai de encontro aos pinos à sua frente. E eu queria fazer um strike. Foi o que consegui.

O primeiro pino foi o velho. Os outros pinos, as cabras. Estas eu trucidei quase que por instinto, pois o air bag se fez presente no impacto do carro com as pernas esqueléticas do homem. Yes!! Um belo strike!! Certeiro. Prazeroso. Extasiante. Coloquei os corpos das quatro cabras e do velho em minha Pajero Sport. Eu os cobri com uma lona que encontrei numa horta no sítio mais próximo ao local do strike.

O que faria com os corpos? Essa pergunta gerou uma solução genial, modéstia à parte. A saída que encontrei foi levá-los para uma imensa fazenda que anunciava há meses para vender em Divinópolis. Ali eu os enterrei. Ajoelhei e agradeci a oportunidade que eles me ofereceram. Por meio deles, senti minha alma reverenciando minha decisão e se nutrindo desta experiência recém-descoberta. A morte passou a alimentar meu íntimo e a preencher o vazio existencial que me corroía há anos.

Era esse o brinde que eu gostaria de fazer ali no terraço, no aniversário de minha mãe. Minha vontade foi de pegar uma taça também e preenchê-la pelo espumante que meus pais distribuíam no círculo formado por eles, meus irmãos e minhas cunhadas. E bradar, honrosamente:

- Um viva à fazenda que venderei em breve! Pois nela estão tesouros inestimáveis que vêm nutrindo a minha alma há anos!

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