Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Abdul - o Coveiro!

Abdul, o coveiro, era um homem egoísta e solitário.

Egoísta porque a Morte lhe dera duas opções para tê-lo como servo e reduzir ao máximo seu derradeiro encontro com ela: pouparia ao máximo a sua própria vida OU a de seus pais (Abdul era filho único). Ele optou pela primeira alternativa.

Solitário porque Abdul não queria se envolver emocionalmente com ninguém, ainda mais com uma mulher. Imagine se a Morte poupasse sua amada até o casamento. E na noite de nupcias, quando estivessem fazendo amor, se percebesse amando o corpo morto de sua esposa?

Pelo mesmo motivo, fugia da convivência social. Evitava estabelecer laços de amizade, até mesmo com seus colegas de trabalho: os coveiros do cemitério da Paz.

Abdul se sentia desconfortável também com os clientes que vinham ao seu local de trabalho para velar e ver o enterro de gente querida. Quando eles tentavam dialogar com Abdul, Abdul era objetivo, frio e seco, tal como a Morte. Suas olheiras, fundas como duas covas, eram simpáticas - bem diferente da Morte. E espontaneamente convidavam as pessoas a se aproximarem de Abdul. Mas ele logo cerrava os olhos e virava o rosto para não deixar as pessoas se aproximarem muito. Elas poderiam ver suas próprias covas nos olhos que refletiam a Morte.

Abdul vira muita dor e lágrimas em seu trabalho diário como coveiro nestes trinta e cinco anos de carreira. E seu início não foi nada fácil. Nada fácil... Ele não conseguia dormir direito. Ao fechar os olhos, apenas ouvia choros, soluços, rezas e ladainhas. E, mesmo sendo um homem sem fé, rezava para aquela experiência da morte não ocorrer tão cedo. Desesperava-o ver seus pais receberem a fatídica visita.

Percebeu, então, a importância de estar preparado para a chegada da Morte. Porém, passava dia, terminava mês, e Abdul continuava apavorado de ansiedade de se deparar com a dita cuja. Chegava até a imaginar qual daqueles coveiros com quem trabalhava enterraria seus pais. Quando um deles conversava com Abdul, Abdul não os ouvia. Apenas via a cena desse companheiro jogando terra sobre o caixão de sua família.

Por isso, Abdul não conseguia nem mesmo participar silenciosamente de nenhuma roda de conversas entre seus colegas. Uma simples discussão entre coveiros cruzeirenses e coveiros atleticanos gerava na mente de Abdul uma discussão sobre quem seria o responsável por descer o caixão de seus pais na cova profunda do cemitério.

À medida que Abdul se isolava de seus companheiros, se aproximava ainda mais de seus pais. Abdul não suportava a ideia de perde-los. Agarrava-se como um carrapato a eles quando não estava trabalhando. Qualquer espaço entre o abraço que os unia era sentido por Abdul como um puxão da Morte levando um deles para longe de si.

Isso fazia com que Abdul abraçasse ainda mais fortemente seus pais, tal como um cão tarado gruda em nossa perna considerando-a a salvação de todos os seus problemas. Seus pais, carentes e humildes, deixavam Abdul se enroscar neles. Fingiam indiferença. Todavia, no fundo, se sentiam especiais, amados como nunca foram em suas miseráveis vidas, tal como a perna deve se sentir em relação ao cão que lhe gruda virilmente.

Assim, Abdul tornava-se insano com a ideia de seus amados morrerem. Chegara ao ponto de pegar o banquinho da cozinha toda santa noite e o colocar na porta de entrada do quarto dos pais. A fraca luzinha do corredor iluminava aquela criatura perturbada velando o sono do casal. Abdul sentia-se como um guardião. O guardião da vida. Sua ordem era impedir a aproximação da Morte.

Foi nesta época que as olheiras de Abdul tornaram-se nítidas manchas escuras. Era cada vez mais difícil enxergar os olhos de Abdul. Pareciam cada dia um centímetro mais fundo. Porque Abdul trabalhava o turno da manhã e da tarde para cumprir com o protocolo da morte: enterrar corpos sem vida. À noite ele se rebelava contra aquela que de certa forma pagava seus salários. Se a Morte não mais trabalhasse, ele estaria desempregado. Vivia, portanto, uma relação de amor e ódio com a sua chefe.

Até que em determinado dia aconteceu algo estranho (para não dizer macabro). Ele era o último coveiro a
sair do ambiente de trabalho. Gostava de deixar tudo bem organizado e preparado para a jornada do dia seguinte. Enquanto seus companheiros saíam religiosamente às dezoito horas, Abdul demorava mais meia hora ou mesmo uma hora para deixar o local.

Passou pela portaria e deu boa noite, com a cabeça baixa, para o vigia.

- Boa noite, Abdul - retribuiu o vigia.

Abdul morava a dois quarteirões dali. E ele caminhava, circundando os muros do cemitério à direita até chegar à rua que o levaria ao seu casebre antigo e sujo. Foi quando ouviu uma voz feminina, metálica e sedutora:

- A-B-D-U-LLLLLLLLL... A-B-D-U-LLLLLLL...

Abdul se apavorou. Virou a cabeça com olhos arregalados para cima, para a direita e esquerda. Nada viu. Colou as costas no muro do cemitério e travou ali, diante da rua. Continuava olhando para todas as direções, sem ver nada nem ninguém.

- A-B-D-U-LLLLLLLLL... A-B-D-U-LLLLLLL... - ouviu novamente a voz de uma mulher vinda sabe-se lá de onde...

Nenhum carro, nenhum pedestre, ninguém à vista. Apenas a voz. Ele e a voz.

Ouviu passos sem ver pernas. Sentiu um cheiro de rosas sem detectar flores. Até que viu uma mulher vestida com roupas pretas provocantes, tatuagens pelo corpo e batom vermelho bem evidente em seus lábios sedutores.

- Gostou de minha aparência, Abdul? - a mulher deslizou suas mãos por suas próprias curvas, vaidosa de ter um corpo tão atraente.

- Quem é você? De onde veio? Como apareceu de repente à minha frente? - Abdul perguntou, todo afobado.

A mulher sorriu.

- Eu sou assim, Abdul. Quando as pessoas menos esperam, torno-me presente.

Fez uma pausa eloquente e continuou:

- Mesmo as pessoas se preparando para a minha chegada triunfal, elas ainda assim se surpreendem... Como você, A-B-D-U-LLLLLLL...

- Eu?

- Sim... A-B-D-U-LLLLLLL... Tenho notado sua vigília na porta do quarto de seus pais... Você me comoveu, sabe? Um belo guardião... meu bom e dedicado guardião... Ahahahahahaha!!

Abdul mantinha os olhos arregalados. Estava sem reação.

- Desculpe meu humor mórbido, A-B-D-U-LLLLLLL... Mas o que disse é verdade... Você me sensibilizou mesmo... Tanto que tenho uma proposta a fazer...

- Ãh?

- A-B-D-U-LLLLLLL, meu querido A-B-D-U-LLLLLLL... Vejo sua proteção dedicada a seus pais... Porém, hoje é o grande dia em que alguém da sua família precisa vir comigo...

Abdul arregalou ainda mais seus olhos.

- Como você me comoveu e trabalha diretamente comigo todo santo dia, quero continuar contando com um servo tão dedicado...

- Não estou entendendo? Quem é você?

- A-B-D-U-LLLLLLL... A-B-D-U-LLLLLLL... Você sabe quem eu sou... Não precisa fingir ou não querer reconhecer minha presença... É melhor encarar a realidade tal como ela é, meu doce e amedrontado A-B-D-U-LLLLLLL...

- Você? Com estes trajes?

- Sim, A-B-D-U-LLLLLLL... Peguei esse corpo recentemente... de uma guria que sabia como aproveitar a vida. Vivia intensamente... Não dava bola para a opinião dos outros... Era autêntica. Eu gosto de originalidade. E também porque queria dar uma recauchutada na minha imagem... abandonar aqueles trajes costumeiros e já ultrapassados... Pra quê carregar uma foice? Basta um beijo, romanticamente mortal, para o outro vir comigo... Nada de violência...

Abdul não esboçou um sorriso... A moça percebeu. E foi direto ao ponto:

- A proposta é a seguinte, A-B-D-U-LLLLLLL.. Ou você ou seus pais! - a moça dava mostras de que, independente de sua aparência, continuava com um estilo bem seco e objetivo.

- Hein?

- Não se faça de desentendido, A-B-D-U-LLLLLLL.. Hoje levarei você. Pode ser aqui e agora. E será até glamouroso. Partirá num local perto tanto de seu trabalho quanto de sua moradia... Hein? - Ela deu uma piscadinha. - Ou será seus pais.

Abdul permanecia em silêncio.

- A escolha é sua. Opte por uma dessas alternativas e você terá minha bênção. Seja para você ou para seus pais. Adiarei ao máximo, segundo as ordens do Destino (porque sou serva Dele), você ou eles. Quem escolhe?

- Leve meus pais! Serei seu servo!

- A-B-D-U-LLLLLLL.. A-B-D-U-LLLLLLL.. Não pense que poupando sua vida agora, você será capaz de me enfrentar e me impossibilitar de levar seu pai e sua mãe... Acha que eu lhe darei super poderes com minha bênção? Não, não, não. Nada disso! Apenas o protegerei o suficiente para não morrer tão cedo... E você fará alguns servicinhos pra mim... Hein? - Ela piscou novamente para Abdul.

- Leve meus pais! Cumprirei suas ordens!

- Ok! - E desapareceu!

Abdul saiu correndo, cheio de coragem. Não por sentir-se abençoado de super poderes. Ele simplesmente acreditava que chegaria a tempo em casa e venceria o duelo contra a morte. Ela não poderia leva-lo. Tinha dado sua mortal palavra. E ele aproveitaria a impossibilidade de morrer para salvar seus pais. Correu, correu, convicto de que continuaria sendo bem sucedido em seu posto de guardião.

Quando chegou, a porta estava aberta. Ele gelou.

Correu, cambaleante, até o quarto dos pais. Ali ele desabou. Chegou tarde demais. Ajoelhou-se escorado na cama e chorou convulsivamente. Uma escolha. Uma vida. Duas mortes.

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