Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Realidade

Ele acabara de assistir o último episódio da quarta temporada de Criminal Minds. Gostou de ver o Hotch ser surpreendido pelo psicopata logo ao entrar no quarto do hotel. Preferiria que todos da equipe, não apenas o líder dela, fossem encurralados. Ah... como adoraria...

Ficou alguns minutos olhando a TV de LCD já desligada. Mentalmente ele traçava seu diabólico plano. Imaginou como sequestraria cada membro deste seleto grupo do FBI. Usaria as mesmas estratégias empregadas por Hotch, Morgan, Garcia, Reed, Rossi, JJ e Prentis para traçar o perfil psicológico de cada serial killer que caçam. Construiria meticulosamente o perfil de cada um. Descobriria claramente as vulnerabilidades de cada qual e as usaria como iscas para atraí-los. E essas sete armadilhas, todas elaboradas de forma peculiar e genial, seriam a fonte de seu sucesso.

Ele, então, seria reconhecido como aquele que liquidara com a nata da Unidade de Análise do Comportamento. Teria uma glória infinitamente maior do que qualquer serial killer. O sonho de deixar uma marca na vida seria, enfim, realizado.

O despertador de seu celular entrou em ação. A nona sinfonia de Beethoven, seletivamente programada, o trouxe de volta ao presente. A cada dia, uma música clássica diferente o lembrava de que era hora de trabalhar. Passou estoicamente por esse processo durante os últimos dez anos.

Chegara o momento de colocar o ponto final na sua mais gratificante obra. Infinitamente mais magnânima do que o planozinho infantil que acabara de imaginar. A distração de como acabaria com os agentes da série Criminal Minds serviu-lhe de descontração. Já os retoques derradeiros do que empreenderia nesta noite demandavam mais inspiração. E esta veio com a nona sinfonia, a qual se espalhava por cada cômodo da mansão, graças à sincronia entre o seu moderníssimo celular e o equipamento de som de última geração.

Foi até o elevador. Ele era grato aos seus pais por ter deixado como herança uma residência tão funcional. O luxo ali existente poderia impressionar os visitantes. Porém, não o comovia tanto. Preferia sentir o prazer de viver num local primorosamente organizado. E, além disso, as visitas não faziam parte de sua rotina desde quando o acidente matou seus progenitores. Apenas o mordomo se movimentava pelo interior da casa. Mesmo assim, obedecendo a ordens precisas e a horários rigidamente preestabelecidos.

Enquanto esperava a porta do elevador se abrir, respirou fundo. A grata sensação de concluir um trabalho em breve seria sentida por ele. No entanto, não poderia deixar que a expectativa o atrapalhasse justamente na fase final do seu plano. Precisou respirar com profundidade. Inspirou, guardou o ar por alguns segundos e o soltou vagarosamente. Repetiu três vezes esse procedimento. Tranqüilizou-se um pouco e entrou no elevador.

Lá dentro, enquanto aguardava a descida completa até o andar subterrâneo, continuou ouvindo a música clássica. Sorriu ao entender porque sua intuição escolhera essa canção justamente no dia em que ele finalizaria sua obra. A nona sinfonia foi a última composta de forma completa pelo genial Ludwig van Beethoven. Leu como um sinal promissor.

Após os cinco andares, chegou ao subterrâneo. Quando a porta do elevador se abriu, ele mais uma vez sentiu o nervosismo. Precisou aplicar seu ferrenho autocontrole. Conseguiu. O distanciamento emocional, marcado por sua assombrosa frieza, retornou. E imperaria em cada movimento seu naquele ambiente – o único em que o mordomo nunca entrava.

Na verdade, o serviçal não seria muito útil no respectivo recinto. A não ser para retirar a poeira dos livros. Nesse caso, o mordomo teria um trabalho hercúleo a executar. Nas amplas quatro paredes que formavam o andar subterrâneo de duzentos e quarenta metros quadrados espalhavam-se os mais variados exemplares da literatura universal: desde os clássicos até as teses dos mais renomados cientistas atuais sobre as implicações das células-tronco.

Esse tão primoroso cenário literário coloria o ambiente no qual um líquido tomava forma por meio de várias misturas, feitas com os que preenchiam os diversos recipientes manuseados criteriosamente pelo obstinado homem.

A incidência mais concentrada de luz daquele andar subterrâneo se concentrava em seu pequeno e moderníssimo laboratório. Tendo os livros como platéia, a iluminação agora parecia destacar o artista principal: ele próprio, com os olhos brilhando ao segurar um cálice, o qual erguia como um troféu. Sua obra, enfim, concluída.

Contemplou o líquido do cálice como se fosse o Santo Graal. Seu sonho seria colocado em prática já nesta noite. Não suportaria mais aguardar. Esperou muito tempo para preparar a poção que libertaria a sua sede de sangue. Sempre ansiou matar. Mas não matar de forma imprudente, impulsiva ou rápida, como um ladrãozinho qualquer.

Com os efeitos que o líquido elaborado provocaria no organismo, ele obteria o prazer de matar com requinte. Colocaria fim à vida humana por meio de um gesto genial, fruto de um plano minuciosamente arquitetado.

Olhou para o relógio. E depois para o monitor que se localizava ao lado de frascos com vários cordões umbilicais. Os deuses pareciam sorrir para ele. Sua primeira vítima, escolhida e monitorada durante cinco anos, aparecia na tela. Era sua vizinha. Uma senhora idosa, de 81 anos. O táxi que a trouxe foi embora quando a velha desembarcou, ajeitou o xale e pegou as chaves em sua bolsa.

Ele segurou o cálice mais firmemente e se encaminhou para o elevador. Este já o esperava. Bastou apertar o botão para a porta se abrir. Entrou e não conseguiu controlar sua ansiedade. Sua excitação em matar pela primeira vez depois de tanto tempo de espera evidenciava-se pelo suor de sua testa. Chegou até a ter a impressão de que seu membro estava ereto.

Estacionou no andar da entrada principal da mansão. Quase não conseguiu esperar a porta do elevador se abrir. Quando foi possível passar, ele assim o fez com uma velocidade maior do que a costumeira. Agora só faltava a porta de sua residência.

Poucos metros diante de si, sua sede seria saciada quando ofertasse de um modo aparentemente bondoso a poção para a velha. Ah... que delícia seria perceber o sofrimento no corpo já decadente de sua senil vizinha. Para quem achasse que não haveria como sentir mais dor naquela idade, ele revelaria o contrário. Conseguiria, por meio do líquido que criara, incidir ainda mais peso sobre seus ossos já desgastados. Sufocaria seus pulmões já debilitados. E alteraria seu ritmo cardíaco numa arritmia magistralmente controlada pelas substâncias presentes na poção. Até a velha comprovar que seus dolorosos 81 anos foram leves em relação ao efeito provocado pelo líquido.

Quando colocou a mão na fechadura da porta de entrada da casa e a abriu, só pôde avistar a noite outrora considerada mágica, a qual lhe apresentaria ao saboroso mundo sangrento tão pacientemente aguardado. Porque quando tomou impulso para romper a porta, algo o impediu. Foi travado pelo meio de locomoção do qual se servia há dez anos: sua cadeira de rodas.

Impossibilitado de colocar em ação sua estratégia, sonhada durante tanto tempo, o paralítico teve uma crise histérica. Misturou um riso compulsivo de frustração com um choro visceralmente doído de desilusão.

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