Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Pesadelo

Ela começava a suar frio... Remexia-se na cama, tendo súbitos gemidos, com sussurros indecifráveis. Movimentos espasmódicos ocorriam com as suas mãos – parecia um maestro enlouquecido por estar fora de sintonia com a orquestra. Suas pernas se esticavam debaixo do restante da coberta que ainda a cobria, impulsionando seus pés a pequeninos chutes, como a empurrar um inimigo desconhecido, profundamente indesejado.

Sua cabeça ora virava bruscamente para a esquerda, ora para a direita. Seus olhos fechados mantinham-se cerrados com força, como se ela não quisesse enxergar de frente aquilo que a incomodava. Sua respiração tornava-se cada vez mais ofegante, dando sinais de que o desfecho estava prestes a ocorrer.

Foi então que ela soltou um berro no exato momento em que todo seu corpo foi impulsionado para frente, trêmulo, sentando-se na cama; a coberta caiu de vez no chão, deixando despida aquela pobre alma agonizante.

Ela olhou para o lado direito da cama, ainda com a boca aberta, toda ressecada. Seu marido ainda não chegara. A Gestante ficou ali sentada por alguns segundos. Parecia anestesiada com toda aquela carga emocional impactante e assustadora.

Pegou a coberta do chão e se cobriu. Buscou dormir novamente, recolhida em posição fetal. Mas o que vivera naquela tarde parecia querer retornar. A Gestante tivera de suportar uma dor fortíssima quando agonizara no chão da cozinha horas. E o pior: a dor era acompanhada de flashs com cenas muito estranhas, esquisitas.

Como sua dor era tamanha, ela não conseguiu se fixar nas imagens que vinham à sua mente. Foi incapaz de guardar todas. Mas uma se manteve em sua memória: a de uma árvore antiga, daquelas com raízes visíveis que se esparramam por um longo espaço ao redor do enorme tronco.


O tamanho da árvore era absurdo. E mais absurdo ainda era no que ela se transformava: uma espécie bizarra de gigante com vida, que se movimentava com um ar imponente e altamente assustador. Apenas essa imagem a Gestante conseguiu resgatar e manter em sua consciência.

E não adiantou nada dormir após tanto sofrimento. Porque o resultado foi o recente pesadelo. Pontadas eram novamente sentidas no seu ventre. Ela tocou no seu barrigão de sete meses. Olhou com carinho para seu filho. E se perguntou o que essa imagem significaria. Será que alguma força maligna assombrava sua semente nestes derradeiros instantes de gestação?

A Gestante, instintivamente, não quis esperar a chegada de seu marido para falar sobre a intensidade aguda da dor sentida. Mesmo porque ele andava estranho nos últimos meses. Seu esposo era policial. E só voltaria mais à noite, quando chegaria de seu plantão nas ruas.

Então, em busca de uma solução urgente para decifrar e curar o que quer que existisse de mal com seu bebê, decidiu pegar o metrô. Pegou uma sacola preta embaixo da pia e foi ao quintal da casa. Retornou, fechou as janelas e saiu rumo à estação mais próxima.

Quem observasse a Gestante ali, sentada num dos bancos do metrô, com aquela feição reflexiva, dificilmente imaginaria onde ela estava indo... Quem tivesse oportunidade de ver a imagem que compulsivamente se alojava na mente da preocupada mulher, dificilmente teria uma boa noite de sonhos... E quem soubesse o que ela levava naquela sacola preta, dificilmente sentaria ao seu lado, ou melhor, duvido que adentraria naquele vagão.

A cada estação, passageiros entravam, passageiros saíam do metrô. E a Gestante continuava séria, meditativa, talvez até temerosa... Um ar de urgência parecia tomar conta do estado de espírito daquela mulher. Esta é a segunda vez que o visitarei. A primeira vez – me lembro como se fosse hoje –, eu buscava respostas para a pior fase de minha vida. E agora me deparo com um pesadelo muito mais complexo e perigoso. Somente ele poderá – como daquela vez – me ajudar. Apenas ele tem poder para acessar esses densos e trevosos véus que pairam sobre minha família e esta situação. Que os deuses me ajudem! 
 
O metrô, depois de várias escalas, estacionou na última estação. Poucas pessoas desciam ali. Era uma região da cidade temida por todos. A própria Gestante, por mais que fora criada no ambiente do submundo, corria risco de vida. Mas, feliz ou infelizmente, para ela descobrir as respostas que lhe faltavam a respeito destas dores, necessitava entrar em contato com aquele indivíduo. E, por isso, precisava passar pelos becos e sombrias ruas daquele bairro.

A cada passo, a cada esquina, seu coração batia mais forte. Mesmo tendo estado ali uma única vez, há muito tempo atrás, ela se lembrava de cada detalhe do caminho que a levaria novamente àquele bruxo. Recordou-se também do menino que a atendera no último portal que dava acesso ao corredor por intermédio do qual chegaria ao mulato. E este, naquele dia, lhe esclarecera: Vivo aqui seis meses de cada ano. A vida na sociedade não tem mais atrativo pra mim. Ter uma esposa, conviver com meus filhos, ganhar meu salário mensal, participar da vida social não me satisfazem há muitos anos. Desde quando o vazio existencial quase me engoliu, passei a não encontrar mais sentido e prazer nessa vidinha do dia-a-dia. Sentia um forte impulso primitivo me impelindo a experimentar certas vivências consideradas perigosas, obscuras. Tentei refrear esse instinto, esse anseio, esse ímpeto. Porém, meu vazio só aumentava, o que me levava a desconsiderar minha mulher, destratar meus filhos, me impacientar com a vida social e sabotar meu trabalho na empresa. Assim ocorria porque, no fundo, tudo aquilo era um fardo inútil, superficial e mesquinho que não queria mais manter. Então, reuni a família e fui bem sincero. Disse que, durante seis meses do ano, eu me recolheria e me afastaria daquele estilo de vida tradicional mantido por mim durante tanto tempo. Nesse período, me dedicaria a essa fome de conhecimentos ocultos e de experiências com o tão temido invisível. Nos outros seis meses, conviveria com eles normalmente, como vivíamos antes que esses profundos e intensos desejos me invadissem. Eles assentiram. E aqui estou. Foi o que a Gestante ouviu naquele primeiro encontro entre eles. Agora ela parara no mesmo portal de outrora, diante do mesmo menino – hoje com um olhar mais penetrante e enigmático –, que autorizou mais uma vez o seu acesso pelo escuro e amedrontador corredor. Caminhou uns setenta e cinco passos e se encontrou com ele.

- Seja bem-vinda, minha amiga Gestante. – A visitante sentiu o impacto daquela voz grave, repleta de encanto e magnetismo. E, misteriosamente, sentiu-se um pouco tranqüila.

- Olá, Bruxo! Muito Obrigada.

- Não vou convidá-la a sentar-se aqui comigo no centro deste círculo porque meus amigos poderiam testá-la de uma maneira zombeteira... É, portanto, sinal de respeito de minha parte mantê-la de pé onde está enquanto conversamos, ok? – explicou e perguntou o Mulato.

- Sem problemas, Bruxo – aceitou a Gestante.

- Não! – o Mulato fez bruscamente um gesto com a mão espalmada para que a Gestante não falasse o que iria falar. – Eu já sei. O filho que carrega em seu ventre corre perigo. Você me procura por causa das dores que vem sentindo. – Pressentiu o Bruxo, deixando a Gestante inquieta, pois seus pensamentos estavam sendo captados pelo Mulato.

- Eu tenho acesso a todas as informações que quero. E fico sabendo de tudo por intermédio daqueles que participam ou participaram diretamente dos eventos – e já partiram dessa dimensão. Mas o que você me pede hoje é, digamos, mais trabalhoso... Vou precisar usar toda a quantidade do que você trouxe nesta sacola preta – disse o negro, apontando para o embrulho que a mulher trouxera. O Negro deixou o cachimbo no chão, se levantou e foi até o limite do círculo para pegar com a Gestante o conteúdo existente na sacola preta.

Enquanto o Bruxo levava o material para o centro do círculo, a Gestante silenciou. Aquele momento era crucial para a cerimônia começar e o ritual se desenrolar. O Mulato pegou de volta o cachimbo, colocou mais fumo e o acendeu. As fumaças agora eram mais densas. Os tragos eram mais profundos. E as baforadas mais frenéticas, feitas em vários sopros, sendo espalhadas por ele com grande desenvoltura, força e rapidez por todo o círculo mágico.

A Gestante frisou a testa, intrigada – ou incomodada? – com todo aquele rito. Mas quando o Bruxo pegou as três galinhas pretas que a mulher trouxera na sacola de mesma cor e as degolou habilmente, jorrando sangue por todo o chão mágico, ela teve uma ânsia de vômito. Porém, uma coisa chamou tanto a atenção dela que a fez se concentrar apenas na mesma, esquecendo por completo os movimentos involuntários de seu estômago. As três galinhas, agora sem pescoço, pulavam e escorregavam de modo desgovernado, sem transpor os limites estabelecidos pelo círculo de giz. Enquanto o sangue das três se espalhava no piso, o Bruxo continuava tragando e baforando, baforando e tragando.

Começou, então, a ser formada uma grande nuvem ao redor do Mulato. Não se enxergava mais sua face. Apenas seu vulto por trás daquela densa cortina de fumaça era visto. De repente, ele começou a recitar certos versos numa língua estranha. Um cântico antigo era emanado por seus lábios. Sua voz tornou-se mais encantadora e magnética. As fumaças pareciam obedecer ao maestro do invisível. Como um mestre em tai chi chuan, o Mulato sincronizava movimentos: os pés formavam símbolos com o sangue espalhado pelo círculo mágico; as mãos se movimentavam e usavam o cachimbo como se fosse uma varinha mágica; e com a boca cantos, tragadas e baforadas se alternavam a fim de criar as devidas condições para que o fenômeno ocorresse.

A única espectadora daquele ritual parecia enfeitiçada diante de tal cenário inusitado e assombroso. Porém, por mais que ela tinha ido ali com esse objetivo – conforme fizera no primeiro encontro com o Bruxo –, o espanto novamente se fez notar na expressão da Gestante. Afinal, daquelas nuvens de fumaça começou a se formar um vulto. Uma silhueta tomava forma cada vez mais nítida. Até que o Mulato iniciou, com naturalidade e intimidade, o diálogo com o aquele ser vindo diretamente do invisível:

- Salve-salve, Professor! – o Bruxo saudou com respeito o espectro, curvando-se à sua frente e esticando o cachimbo com o braço esquerdo em sua direção.

- Salve-salve, Mulato!

- Professor, você já deve estar ciente do que nossa amiga deseja saber. Nós a ajudamos muito naquele caso de obsessão na família. E agora ela vem novamente nos procurar. Há alguma pessoa que o senhor pode trazer aqui para conversar conosco?

Houve um eterno instante de silêncio. O espectro parecia forçar sua vista com o objetivo de enxergar um horizonte secreto diante de si, em alguma fresta entre tantas nuvens de ectoplasma. Em determinado momento, ele parecia ter sorrido. E mexeu com o que poderíamos considerar como sendo a sua cabeça. Sim, ele afirmava.

- Ótimo, Professor! Será que o senhor consegue trazer essa pessoa para cá, permanecendo um pouco entre nós, neste plano de densidade? – o Mulato perguntou, recebendo novamente uma afirmação com aquilo que se assemelhava a uma cabeça de neblina.

O Mulato olhou para a Gestante, a qual se encontrava absorta diante daquele espetáculo do além-túmulo, e lhe disse:

- Você teve sorte, mulher. O Professor é uma espécie de Guardião dos Portais da Morte. E autoriza a manifestação de quem quer que seja neste recinto. Como ele aprovou a vinda de uma visita, vamos lhe revelar alguns preciosos segredos sobre esta situação que vive. – E retornou seu olhar para o espectro.

Um novo fenômeno começou a ser observado naquele secreto recinto. A forma que delineava o fantasma chamado Professor tomou um novo formato e uma outra silhueta se apresentou dentro do círculo mágico, bem próximo ao Bruxo. E este iniciou a inusitada entrevista.

- Se o Professor lhe trouxe aqui, você tem muito a nos informar. E, muito provavelmente, quer ajudar a Gestante a descobrir a verdade desta história que permeia sua semente. Compartilhe conosco o que deseja revelar-nos. – decretou o Bruxo.

A Gestante estava confusa, pois o Mulato parecia saber o que o espectro iria dizer. Mas deixava isso a cargo do espírito recém-chegado. Como um ser que vive neste calabouço mágico pode saber tanto? Quais as peças desse satânico quebra-cabeça lhe seriam entregues por aquela sombra que se formava nas nuvens de fumaça? Que espírito seria este?

Seus silenciosos questionamentos foram interrompidos quando o novo espectro começou a falar.

- Sou aquele que sabe ler as entrelinhas das maldições familiares. Sou Escriba. Redigo o Livro dos Anciões. Nele, a história de cada família amaldiçoada da face da terra está detalhadamente escrita. – A Gestante era a pura expressão de um ponto de interrogação humano... Não tanto pela história macabra que cercava seus antepassados, mas pelo desconcertante meio utilizado para desvelar alguns véus bem espessos que lhe escondiam os derradeiros pontos a serem entendidos do seu passado parental. 

- Este ser que aqui se materializou em nosso ritual é o um espírito antigo, uma espécie de sentinela das famílias amaldiçoadas – detalhou o Mulato, passando novamente a palavra para o fantasma.

- A dor que sente em seu ventre vem da consciência e da rebeldia do espírito do bebê que está gestando. Ele se recusa a encarnar e herdar o peso da maldição que paira em sua família há séculos e séculos.

A Gestante empalideceu e sua face gélida a fez parecer mais um fantasma naquele recinto mágico.

- O tempo está se esgotando – continuou o Escriba. – Em breve, seu filho nascerá. Enquanto isso, ele trava no seu ventre uma batalha contra a sua aterrorizante árvore genealógica. Por isso, é necessário vigiar o pai do garoto, seu marido. Porque ele, influenciado por sua semente, tem um plano diferente do seu, mulher. – O som que saía da boca ectoplasmática do Escriba começava a desaparecer. Antes de se esvair por completo, ele emanou: - A intenção dele é seguir as ordens de seu filho para que este se livre dos meandros desta sombria história familiar que está se envolvendo.

O Mulato, com o cachimbo na mão, fez alguns movimentos enquanto entoava determinados cânticos. Concomitantemente, o fantasma do Escriba foi perdendo a forma. Por incrível que pareça, o sangue das galinhas degoladas não mais existia no chão do círculo mágico. E todas as fumaças sumiram. O Bruxo já podia ser facilmente percebido pela Gestante.

Antes de sair do local onde executara tão naturalmente aquela cerimônia, o Mulato fez questão de agradecer em voz alta ao Professor, como se este ainda estivesse ali, embora não pudesse ser visto. A Gestante deu dois passos para a esquerda, em direção ao imenso e escuro corredor por onde tinha adentrado naquele enigmático recinto. Com impaciência, queria logo entrar em ação, pois, conforme fora previsto pelo Escriba, a qualquer instante seu marido policial poderia realizar seu plano. Ainda não sabia qual, apenas que era diferente do seu.

- Tenho apenas mais um recado para você, amiga Gestante – falou o Mulato, freando o movimento ansioso da mulher.

Ela virou-se para o Bruxo, ouvindo-o:

- O Professor me soprou um conselho para você. É o seguinte: não pense no óbvio. Ouse romper com a tradição.

A Gestante, mesmo sem entender essa parte final, agradeceu rapidamente tudo o que lhe foi transmitido no ritual executado pelo Mulato. E saiu afoitamente do recinto.

Ao passar pelo menino do portal, depois de ter deixado rapidamente para trás o corredor que dava acesso ao Bruxo, ela viu uma limusine sendo estacionada em frente à masmorra mágica do Mulato. Dela saíram dois senhores de terno e gravata. Pareciam ser seguranças, pois acompanhavam, como dois cães de guarda, uma senhora repleta de jóias muito brilhantes e vistosas. Logo os deixou para trás também, tamanha a pressa que a impelia em direção ao metrô. Precisava chegar em casa antes que seu marido retornasse do plantão.

Deu sorte! Logo ao pisar na plataforma de espera, o metrô chegou, parou na estação e abriu as portas para ela e mais algumas poucas pessoas entrarem. Desta vez, a sacola preta que carregava estava vazia. E se estivesse cheia, até mesmo com a cabeça de cada galinha degolada à mostra, não repeliria tanto os outros usuários do metrô como o que ela emanava através de sua aparência. Seu semblante apresentava uma feição sisuda e combativa. Sua visível preocupação emanava uma aversiva careta, fruto do turbilhão de pensamentos e sentimentos que a angustiava. Procurava imaginar o que faria quando chegasse em casa e se deparasse com seu marido. Além disso, como lidaria com as dores lancinantes de sua semente, caso elas retornassem com a mesma intensidade daquela tarde?

Maldita herança familiar... A mãe de sua bisavó, a de sua avó e a de sua mãe passaram pelo mesmo drama. Ela, com o nascimento de seu filho, tinha tudo para repetir o padrão. Ou melhor, ele – assim como cada primogênito de suas antepassadas – possivelmente agiria do mesmo modo com relação a ela.

Pelo jeito, ele queria evitar essa sina. As dores eram a expressão de sua revolta. O Escriba deixara isso bem claro. Também revelara que elas retratavam um pacto invisível entre seu filho e o pai dele. E o conselho final era para ela não agir de forma óbvia. Rompa com a tradição.

A estação do metrô em que desembarcava era bem próxima da sua residência. Com seus passos apressados, ela diminuiu ainda mais o tempo de chegada. Ao abrir a bolsa para encontrar as chaves da porta de entrada, ela ouviu um barulho dentro de sua casa. A luz da cozinha estava acesa. Ela pôde ver pelo vidro fosco. Seu marido chegara.

- Ai! – soltou um gritinho de dor. Seu filho parecia ter reagido à percepção dela de que o pai dele conseguira chegar primeiro que ela. – Ai! – outra pontada vinda de seu ventre. Ela se curvou de dor e encaixou rapidamente a chave na fechadura. Abriu a porta.

- Ôh, meu amor... onde você foi? Fiquei preocupado quando cheguei e não encontrei vocês dois aqui. – O policial se aproximou da Gestante. E ao vê-la com a mão no barrigão de sete meses, em uma posição mais encolhida, fruto da dor, pegou em sua mão. - Você está sentindo dores, meu amor? – ela assentiu com a cabeça. – Venha até aqui – o marido chamou.

A Gestante sentou-se no sofá. O marido dela, após ter passado a noite anterior fora, a recebera em seu retorno ao lar com um estado de espírito glorioso, com um olhar brilhante. Mesmo depois dela ter lhe contado sobre a visão e as dores profundas que sentira naquela tarde, confessando-lhe o tanto de medo que teve do filho deles sofrer em decorrência delas, o marido não perdeu a pose; muito pelo contrário, seu olhar adquiriu uma expressão ainda mais radiante. A Gestante não entendeu. “Não pense no óbvio”, lembrou-se.

O marido policial, com toda sua astúcia, sabia da fé de sua esposa nos desígnios divinos (afinal, esse foi um dos grandes atributos buscados por ele para a mulher que se tornaria a mãe de seu filho), e, por isso, contou-lhe o significado daquelas dores.

- Meu amor, nosso filho foi testado por Deus e assim continuará até que você entre em trabalho de parto. Haverá outras dores tão agudas como as que sentiu hoje à tarde. Mas não se preocupe, pois elas têm um significado maior: a de fortificar nosso filho. Diante de cada dor sentida por você, saiba que ele estará absorvendo mais da essência do seu Destino.

E o que ele quer dizer com todo esse fanatismo religioso? Ele não percebe que o risco do comportamento dele mudar comigo ocorrerá quando nosso filho nascer, do mesmo que ocorreu com cada marido de cada progenitora de minha família? Ele não reconhece que seu comportamento mudou desde quando fiquei grávida? “Ouse romper com a tradição.” Ela lembrou-se. Mas como?

- Farei um chá de camomila para você, meu amor!

Enquanto o marido a deixou ali na sala para preparar o chá na cozinha, ela tocou na sua barriga. Não fez carinho algum. Nenhum pingo de compaixão era demonstrado pela Gestante. Naquele instante, ela entendeu o recado do Escriba. Não se transformaria numa vítima da violência com o nascimento de seu filho. Não se deixaria ser abusada física e psicologicamente por seu marido, assim como sua mãe, sua avó, sua bisavó e possivelmente as outras mulheres de sua ascendência genealógica permitiram. Não, ela não repetiria o padrão. Seu filho não desencadearia com o seu nascimento esse lado estuprador de seu marido. Não, mil vezes não. Apenas eu tenho o direito de fazer mal a mim mesma. “Ouse romper com a tradição.”

- Booooom!!! – foi o som que seu marido ouviu quando a água do chá começara a ferver.

Ele se virou rapidamente para a sala. Viu a Gestante com sua arma na mão. Pôrra, por que deixei meu coldre na mesinha ao lado do sofá? A fumacinha saia do revólver. Como ela mantinha o braço no alto, segurando-a, logo ele concluiu qual foi o alvo de seu tiro. Correu até lá e, apavorado, olhava sua esposa apontar a arma agora para si própria. Fazia esforço nesse gesto, pois o sangue que escorria de sua barriga sinalizava o nível do estrago feito por ela sobre aquele que até então gestava. E, claro, representava a dor a que se submetia para não deixar que a maldição familiar continuasse sendo repercutida. Ela arrancara radicalmente o galho que lhe pertencia naquela árvore genealógica macabra. E agora encostou com força a ponta do revólver em sua testa, deixando marcada de vermelho a região ao redor desse contato com a arma.

Olhou para o marido e disse:

- Você não irá me estuprar como meu pai fez com minha mãe quando meu irmão mais velho nasceu. Não irá me violentar, assim como meu avô fez com minha avó quando meu tio nasceu. Eu não deixarei você tocar em mim. Eu não serei vítima da sua violência.

Não deu tempo do marido nem perguntar que ideias malucas eram estas de estupro e violência. Para fazer o trabalho completo, a até então Gestante apertou o gatilho e colocou fim à sua vida.

A fumaça e o cheiro de queimado que se juntaram aos da sala, por conta do segundo tiro, foram os da vasilha com a água anteriormente fervida que evaporou.

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